Saúde e moradia: o problema de um é o problema de todos

Pensar soluções que cheguem a todos é tirar a arquitetura de um nicho que atende só a quem tem privilégios. É assim que a arquiteta e urbanista carioca Natália Cidade, 32 anos, reflete sobre as lições sociais que a pandemia de Covid-19 traz à sociedade e à classe profissional. Formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do RJ (FAU-UFRJ) e mestra pelo Prourb-UFRJ, Natália é doutoranda no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, e um dos eixos da sua atuação profissional é a área da saúde e construção de políticas públicas, acreditando que o arquiteto e urbanista deve ser agente de promoção tanto da moradia quanto de saúde.

Natália observa que é necessário levantar discussões profundas ainda na faculdade sobre os deveres dos arquitetos e urbanistas como agentes promotores dos direitos constitucionais que melhoram a qualidade de vida das pessoas. “É um debate e maior aprofundamento sobre os mecanismos de ação para que se pense condições básicas de infraestrutura em um determinado contexto urbano, em como os entes governamentais podem integrar políticas e ações de saneamento”, pontua.

Tendo atuado na área de construção civil e em escritórios de arquitetura, Natália decidiu redesenhar seu caminho na produção científica. Na pesquisa em que trabalha atualmente, no Cento de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (CEPEDES) da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Natália investiga o tema das emergências e desastres em saúde pública, através do projeto: “Emergência em saúde pública por desastres no Sistema Único de Saúde: inundações graduais na Região Amazônica e seca e estiagem no Semiárido do Brasil”. O objetivo do trabalho é elaborar guias de preparação e resposta para orientações do Sistema Único de Saúde nos municípios atingidos por emergências por desastres naturais, como inundações e secas.

Neste episódio da série Entre pontos de Vista, Natália conta como sua trajetória profissional e pessoal a levou a explorar os limites dos sistemas de saúde e propõe discussões sobre o papel do arquiteto e urbanista na promoção de bem-estar social em meio à maior pandemia da história recente do Brasil.

Como a Arquitetura e Urbanismo pode contribuir para a pauta da saúde?

Natália Cidade – Historicamente, estamos afastados enquanto campo disciplinar dessa discussão, pelo menos no Brasil, com uma atuação de poucos grupos. Acredito que nossa capacidade de atuação é enorme se estivermos aliados aos debates já existentes e impulsionados por outros campos do conhecimento e da gestão pública. Acho muito problemático estarmos tão afastados tanto da discussão quanto das práticas, do pensar a cidade a partir dessa complexidade e da articulação de todos esses sistemas, porque essa é a prática. Se nós não agirmos enquanto profissionais nesse debate, decisões serão tomadas, caminhos serão traçados de toda forma, e estaremos perdendo a oportunidade de oferecer o tanto que nossa formação permite contribuir. Até 2018, segundo o Sistema Nacional sobre Saneamento (SNIS), quase 40 milhões de pessoas no Brasil não eram atendidas por sistemas de abastecimento de água tratada e 5,4 milhões de pessoas não possuíam um banheiro em suas casas.De acordo com dados do IBGE, em 2018, foi registrado no país 1/4 da população vivendo abaixo da linha de pobreza, sendo que 13,5 milhões em condições de extrema pobreza. A população das favelas no país chega a quase 14 milhões de pessoas, fora as demais populações periféricas, população de rua, etc. Essas pessoas vivem em situação de extrema vulnerabilidade, condições de saúde que dificilmente serão mantidas se há ausência ou precariedade de saneamento básico, oito pessoas ou mais dividindo um cômodo, enorme proximidade entre residências, ausência de ventilação em muitos casos, etc. Acho que a discussão sobre intervenção no espaço urbano precisa contemplar todos esses grupos de forma democrática e igualitária. Não pode estar limitada a um único grupo a quem condições adequadas de infraestrutura são oferecidas.

Qual é o papel dos arquitetos e urbanistas no combate ao coronavírus nas cidades? 

Natália Cidade – Acho que o nosso papel é entender qual é o limite e a possibilidade de nossa atuação nesse momento. Estamos vivendo um momento muito paradigmático que revela a urgência de se ter um debate muito afinado entre direito à cidade e saúde pública, porque fica cada vez mais claro como uma não existe sem a outra. Os maiores impactos de uma cidade que é negada à grande parte de sua população ficam claros ao vermos que as medidas de orientação para prevenção ao vírus não estão em consonância com a realidade de milhões de pessoas no país. Como lavar as mãos o tempo todo se não há água? Como usar sabão e álcool gel se não se tem dinheiro nem para comprar comida? Como deixar os ambientes arejados se há tantas casas sem janelas? Como evitar aglomerações em lugares onde dez pessoas dividem um cômodo? Como seguir as medidas de distanciamento social, evitar mobilidade, se o movimento pendular casa-trabalho-casa é a realidade para grande parte da população das periferias que trabalha em outro município? Mesmo que tenhamos orientações da Organização Mundial da Saúde sobre práticas de higiene e pensarmos, como arquitetos, em soluções construtivas e de higiene doméstica que possam ser eficazes, a raiz do problema reside em lugares onde essas soluções não podem ser implementadas. Precisamos ressignificar essas orientações, tendo em vista nossa realidade social. Pensarmos soluções que cheguem a todos é tirar a arquitetura de um nicho que atende só a quem tem privilégios. E uma pandemia como essa deixa claro uma coisa que todos deveríamos saber há muito tempo e lembrar o tempo todo: o problema de um é o problema de todos. Tem um grupo de pessoas da nossa área já atuando e se articulando, o grupo Urbanistas contra o Corona. Para o momento, as respostas que eles vêm apresentando representam muito do que eu poderia trazer como contribuições possíveis para profissionais da nossa área para esse momento: Conscientização – trabalhar com constância para chamar a atenção para essa realidade – e Planejamento e construção – preparar os territórios para novas situações como a que estamos enfrentando, organizar em ações emergenciais, a médio e longo prazo. Essa crise atual acentua graves problemas sociais que já temos no Brasil, é uma sobreposição de riscos, uma ameaça nova que intensifica os riscos já existentes em cenários de grande vulnerabilidade. No entanto, acredito as melhores respostas vêm justamente das favelas, periferias e tantos movimentos de grupos que ficam à margem da ação do estado – e também atacados por esse estado – e as incríveis respostas encontradas frente a essa violência, direitos humanos e direitos constitucionais atacados por um estado que deveria garanti-los. Acho que a grande força que nossa classe profissional e campo disciplinar podem ter nesse momento é se aliar, dar suporte, visibilidade e aprender como incrível trabalho que vem sendo feito por esses grupos. Frente às precárias políticas de assistência social e medidas econômicas que temos, essas os movimentos populares estão com um trabalho que vai além do assistencial, é um verdadeiro trabalho de gestão territorial, com protagonismo nas respostas e caminhos e uma capacidade incrível de planejamento e gestão.

E como é possível solucionar esse problema?

Natália Cidade – Acredito que as soluções mais eficazes estão calcadas no direito à cidade: políticas públicas adequadas, infraestrutura urbana e saneamento básico e de qualidade para todos, condições dignas de moradia. Claramente precisamos estar não só alinhados a esse debate constantemente, mas ativos e entendendo a repercussão política de nossa atuação. A questão é que, no momento, todas essas soluções que exigem tempo e vontade política para que sejam solucionadas, acabam precisando ser atendidas de forma muito rápida e emergencial. Acho que nosso papel além de nos mantermos firmes à defesa dos direitos e da constituição, é entender como podemos contribuir para essa resposta emergencial. Em um primeiro momento, acho que precisamos estudar bastante o que vem sendo feito em outros países, como está a discussão e a atuação sobre saúde pública no Brasil, com quais grupos é possível se articular, com quem podemos aprender nesse momento.

Quais lições podemos aprender com a pandemia?

Natália Cidade – É uma reflexão para os próximos anos. Por enquanto, acho que a primeira lição é apreendermos os todos do qual fazemos parte. Gosto muito das falas do Ailton Krenaksobre nossa desconexão com o todo, o modo de vida insustentável que um modelo calcado no extrativismo impõe e como o “modo de funcionamento da humanidade entrou em crise”*. A partir disso, penso primeiro no todo planeta Terra, natureza, do qual fazemos parte como seres humanos antes de sermos sociedade. A forma inconsciente como a espécie humana vem consumindo seus recursos e entendendo a terra como recurso e não como origem; nossa relação extrativista com o planeta, que esquece que é ele que nos oferece e nos retira a vida. Há tantos anos, não só outras formas de vida do nosso planeta sofrem com nossa ação irresponsável, egoísta como espécie,com sociedades morrendo, sofrendo por impactos ambientais, guerras, desastres, todas as ações necessárias a esse modelo de “desenvolvimento” que adotamos e tudo o que ele impõe. O segundo todo, a humanidade, quando percebemos uma ameaça que afeta a todos que são da mesma espécie que nós. E acho que, há muito tempo, não enxergávamos que as fronteiras que nos separam são mais tênues do que pensamos. Há muito mais coisas que nos unem do que nos separam. Como arquitetos e urbanistas, acho que, no mesmo sentido, nos deslocarmos para entendermos como podemos ser úteis agora, como podemos agir. Essa pergunta já é uma primeira bela lição, porque estamos saindo do lugar do que sabemos, de como achamos que podemos agir, e entrando no campo do “nossa, não sei o que fazer frente à pandemia”. Entender que essa resposta se estende também ao nosso campo profissional já é uma grande lição. Descobrir o que fazer e fazer juntos, aprender com quem já sabe, olhar para todas as direções, para fora e para dentro, essa é a única solução.

Como você enxerga o futuro da sociedade, das políticas públicas de saúde e da profissão?

Natália Cidade – Acredito que vamos ficar anos sentindo esse impacto, mas também acho que qualquer mudança efetiva precisa ser profunda e, por isso, é lenta. Acho que pode ser que tudo volte ao normal, toda essa transformação que falei na pergunta anterior fique como lembrança desse momento. Poucas pessoas entendam isso como uma oportunidade de reflexão sobre a relação com a vida, a degradação do planeta continue, a exploração de recursos naturais e pessoas que geram tantas guerras e mortes. Mas eu prefiro ser otimista. Acho que a gente tem que ter um pé na realidade vista e um pé na que não é vista. Precisamos mudar nossos modos de vida, os caminhos que estamos trilhando até agora como humanidade, como aponta Krenak e a voz de tantas culturas que ainda estão conectadas com a terra como origem, não como recurso. Estamos tendo uma oportunidade de ressignificação enquanto espécie e, infelizmente, estamos passando por esse momento dessa forma caótica: o mundo em crise, muitas vidas perdidas, muito sofrimento. Essa não é a primeira nem será a última pandemia, e temos cada vez mais claros os caminhos para lidar com esses desafios: defender a ciência, a saúde pública e universal (defender o SUS sempre, acesso gratuito e universal à saúde, uma conquista da sociedade e garantida pela constituição), dar força e visibilidade e nos aliarmos à luta das populações mais vulneráveis e afetadas e traçar novos caminhos a partir de outros olhares que infelizmente ainda não têm o espaço que deveriam. A troca de saberes na busca de respostas, o estudo e aprendizado constante, a solidariedade (caminho para as melhores respostas), a tomada de consciência sobre tudo isso e, acima de tudo, a ação do coletivo, quanto mais forte, mais eficaz será a resposta.

Referência:

Estado de Minas – Entrevista com Ailton Krenak: “O modo de funcionamento da humanidade entrou em crise”

 

 

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