Saneamento das desigualdades: direito básico que não chega a toda população

O acesso à saneamento básico é um direito garantido por lei. Contudo, os serviços que o compõem, como distribuição de água, coleta de lixo e de esgoto, seguem com cobertura inferior para a maioria da população. Afetando principalmente pessoas pretas, pardas, indígenas e de baixa escolaridade, a falta de acesso a este direito básico, mesmo que hajam políticas públicas que incentivem sua universalização, demonstra uma série de desigualdades ao longo dos anos a ser combatida em conjunto de todas as esferas da sociedade. 

A Política Nacional de Saneamento Básico (Lei 11.445/07) estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, cujos serviços públicos se baseiam nos princípios fundamentais da universalização do acesso e efetiva prestação do serviço, na integralidade, no abastecimento de água, no esgotamento sanitário, na limpeza urbana, no manejo dos resíduos sólidos realizados de forma adequada à saúde pública, na conservação dos recursos naturais e na proteção do meio ambiente.

De acordo com o Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 3.505 municípios brasileiros tinham menos da metade da população morando em domicílios com coleta de esgoto, enquanto em 2.386 municípios menos da metade dos habitantes moravam em domicílios com esgotamento por rede coletora ou fossa séptica.

Já a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual (PNADCA/IBGE), analisou que cinco tipos de privações causam problemas de saneamento: acesso à rede geral, frequência insuficiente de recebimento de água, falta de reservatório, ausência de banheiro e falta de coleta de esgoto. Segundo o levantamento de dados, um a cada dois brasileiros convive com privação de saneamento.

Afetando um total de 22,8 milhões de pessoas, a falta da coleta de esgoto é aspecto preocupante na universalização do saneamento básico. Ao lado de rios, córregos, valas, ou até mesmo em ruas com esgoto a céu aberto, tal carência torna-se questão de saúde pública dada a contaminação por diversas doenças gastrointestinais, atingindo a parcela mais jovem da população (menores de 20 anos), além de pretos, pardos, indígenas e pessoas com baixa escolaridade.

A ausência de saneamento é fator potencializador da desigualdade social, já que a abrangência de serviços públicos também se mostra relacionada à faixa etária. Na coleta de esgoto, por exemplo, 36,2% das pessoas das crianças brasileiras de 0 a 4 anos moravam em habitações sem acesso ao serviço. Essa taxa foi ainda maior na faixa etária de 15 a 19 anos: 37,7%. 

Os serviços de água e esgoto levam mais tempo para chegar em locais pouco urbanizados. A falta da garantia nos serviços regulatórios indica descaso com espaços mais afastados dos grandes centros urbanos, como zonas rurais, favelas e outras ocupações, tendo em vista que ainda há muito que caminhar para a melhoria do saneamento básico no país.

Propostas como o Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14.026/20) prometem a universalização da coleta de esgoto para 99% da população até dezembro de 2033. O texto redefine normas gerais de contratação de serviços públicos tendo como foco licitações de prestação de serviços regionalizado. Contudo, aumenta a participação de capital privado nos serviços de saneamento, o que dialoga diretamente com as populações mais vulneráveis.

O  inciso 8° do artigo 45 da lei prevê que “o serviço de conexão de edificação ocupada por família de baixa renda à rede de esgotamento sanitário poderá gozar de gratuidade, ainda que os serviços públicos de saneamento básico sejam prestados mediante concessão, observado, quando couber, o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos”. 

Já o artigo 49 da mesma legislação, traz em segundo parágrafo medidas de cuidado para com as populações de baixa renda destacando que é imprescindível “priorizar planos, programas e projetos que visem à implantação e à ampliação dos serviços e das ações de saneamento básico nas áreas ocupadas por populações de baixa renda, incluídos os núcleos urbanos informais consolidados, quando não se encontrarem em situação de risco”.

Para Samanta Tolentino Cecconello, coordenadora dos cursos de Tecnologia em Saneamento Ambiental no Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSul), as políticas públicas de saneamento básico no Brasil têm evoluído ao longo do tempo, mas ainda enfrentam desafios significativos na compreensão e atendimento das necessidades da população. “Vários fatores contribuem para a complexidade e desafios enfrentados, incluindo questões de infraestrutura inadequada, desigualdades socioeconômicas, dificuldades de acesso em áreas remotas, falta de investimentos suficientes e problemas de gestão.”

Também mestra em Ciências Ambientais, Samanta complementa que “a pandemia de coronavírus destacou ainda mais a importância do acesso a serviços de saneamento básico para a saúde pública, tornando evidente a necessidade de uma abordagem abrangente e eficaz para lidar com essas questões”.

Quanto a incentivo de projetos de saneamento, ela aponta que “oferecer subsídios ou outros incentivos financeiros para comunidades ou empresas que desenvolvam e implementem projetos de saneamento básico também pode estimular o investimento nessa área, mas acredito que investir em programas de capacitação e educação para funcionários, gestores e comunidades locais pode melhorar a eficiência na gestão de sistemas de saneamento básico e promover a conscientização sobre a importância da higiene e saneamento”.

A engenharia e o urbanismo desempenham papeis fundamentais na concepção e implementação de soluções efetivas em saneamento básico. O profissional de urbanismo contribui planejando as cidades de forma que considere locais próprios para instalações de redes de água potável e esgoto, bem como os engenheiros (junto aos arquitetos) são responsáveis pela construção e manutenção dessas obras, garantindo a sustentabilidade e a adequação das necessidades locais da população.

Segundo a presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Andréa dos Santos, “profissionais de arquitetura, urbanismo e engenharia devem trabalhar em conjunto com representantes das instituições sociais na criação de equipes técnicas multidisciplinares que visem, além da universalização do saneamento, o atendimento efetivo das demandas da população”.

Atualmente, os profissionais de arquitetura têm sofrido com a privatização massiva dos serviços públicos (principalmente das concessionárias voltadas ao abastecimento de água, cujo monitoramento também é realizado pelas agências de regulação). A retirada do caráter público de algo cuja participação de todos reflete em mudanças significativas na gestão desses serviços, tem por consequência a falha de operações dos mesmos, atingindo todos os profissionais envolvidos – incluindo arquitetos.

A privatização é tópico relevante nas discussões destes profissionais pois traz consigo a preocupação constante da manutenção da qualidade de serviços de saneamento adequados, em especial a comunidades marginalizadas.

Quanto aos servidores públicos profissionais de arquitetura que trabalham em instituições estatais que foram privatizadas, tal transição envolve incertezas nas condições de trabalho e estabilidade do emprego e benefícios garantidos pelo setor público. Andréa, ao mencionar a cartilha T.A.BA., projeto da FNA, enfatiza que “é fundamental que esses profissionais tenham seus direitos protegidos durante o processo de privatização, bem como a segurança de que seus conhecimentos e atuação profissional sejam igualmente reconhecidos dentro do contexto privado”.

Também importantes, os arquitetos cuja atuação se dá em empresas privadas, representam novas oportunidades de trabalho e crescimento profissional, dado o aumento significativo em investimentos em desenvolvimento urbano e infraestrutura. Desta maneira, a existência de regulamentação e fiscalização claras são capazes de exigir o cumprimento de padrões de inclusão e responsabilidade social imprescindíveis para o setor de saneamento básico, que desempenham o planejamento urbano e arquitetônico por meio dos profissionais de arquitetura e urbanismo que contribuem com a universalização dos serviços essenciais para reduzir desigualdades de maneira eficiente.

Tal eficiência se reflete na garantia de esgotamento sanitário para prevenir doenças, como por exemplo, o acesso à água potável durante uma epidemia de dengue. A distribuição de água segura para o consumo humano (seja por caminhões-pipa, instalação de pontos de distribuição de água potável ou outras medidas emergenciais) em áreas onde o abastecimento seja mantido de forma contínua e confiável, por meio da manutenção regular da infraestrutura de água e da implementação de medidas que assegurem a não interrupção no fornecimento de água principalmente em períodos críticos, fazem parte de um conjunto de ações que podem prevenir riscos à saúde, não somente associados ao consumo de água, mas ao esgotamento sanitário e ao saneamento como um todo.

Para que a redução das desigualdades por meio do saneamento básico seja possível, Samanta reforça a importância da entrega igualitária destes serviços à população. “Garantir acesso equitativo a serviços como água potável, coleta e tratamento de esgoto é essencial para promover a igualdade, além do que o acesso a água de qualidade e em quantidade adequada é um direito de todos nós. Investir em saneamento básico é investir no bem-estar e na igualdade de oportunidades para todos.”

Foto: Marcelo Casal Jr (Agência Brasil)

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