Com as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul no mês de maio, recentemente foi retomado o debate sobre moradia para a população desabrigada, assunto que se faz presente e é uma bandeira erguida pela Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA).
Segundo dados da Defesa Civil do RS, foram 730 mil desalojados em todo o estado. Já na apuração mais recente, divulgada em 24 de junho, os números passaram para 388.781 pessoas fora de suas casas. Além disso, dados do Governo do Estado apontam que existem 7.346 pessoas em situação de rua inscritas no Cadastro Único. Dados como os fornecidos nos levam a pensar: quais estratégias podem ser uma solução para a população que não possui moradia?
Um termo que vem sendo comentado ultimamente é o Retrofit, técnica de revitalização de construções antigas. A nomenclatura é moderna, mas o processo não. “Retrofit, assim como outros termos, está super em alta quando falamos sobre intervenções urbanas, mas é importante contextualizar que isso não é algo novo. Essas intervenções, ressignificando o uso de espaços, foi muito fomentada quando os movimentos denunciavam as desigualdades sociais e de moradia, ocupando prédios vazios, principalmente nos Centros Históricos das cidades. Essas ações foram impulsionando legislações, como os artigos 182 e 183 da Constituição que falam sobre a função social da propriedade, que, posteriormente, se desdobraram no Estatuto da Cidade em 2001 em vários instrumentos que olhavam para o não cumprimento da função social de imóveis vazios”, explica a arquiteta e urbanista, Karla Moroso.
Portanto, essas intervenções urbanas e ressignificação de imóveis existentes pode ser uma forma de atender as demandas habitacionais de interesse social, podendo ser, inclusive, uma forma de diminuir a periferização dessas moradias, que sofrem com questões de valor da terra. “O custo da terra é caro, por isso a tendência é ‘jogar’ os empreendimentos para as áreas mais periféricas, mas essa terra, nem sempre é servida de toda a infraestrutura necessária, então as redes precisam ser estendidas e isso implica em investimentos que envolvem o poder público.Isso não é bom para a cidade, nem para a gestão pública e muito menos para os moradores destes locais. Então, sim, essa ressignificação de prédios vazios em áreas centrais das cidades é uma boa solução para estas questões”, salienta a profissional.
Porém, Karla afirma que, para que estes imóveis cheguem, de fato na população de baixa renda, população foco das políticas habitacionais, é necessário que ocorra uma ação interfederativa, a partir da qual o estado, com suas políticas públicas de habitação e gestão territorial e tendo como base o cumprimento da função social destas propriedades e os instrumentos do Estatuto das Cidades, produza habitação de interesse social. “É necessário que haja um mapeamento destes imóveis, regulamentação do IPTU Progressivo e da Lei do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios para que os programas públicos façam essa engrenagem funcionar, articulando todas essas ações. O poder público deve enxergar onde estão estes imóveis, fazer um estudo, identificar se são públicos ou privados, pois, se são públicos, precisa haver todo um diálogo com o ente federativo que tenha a propriedade deste imóvel para destiná-lo à habitação de interesse social nos moldes que o Governo Federal já faz com imóveis da União. Infelizmente, em vários estados brasileiros ocorre um processo de alienação destes patrimônios públicos, que são colocados à venda pelos municípios e pelos estados, ao invés de, de fato, direcioná-los para quem precisa. É urgente assumirmos que isso é uma demanda do poder público”, reforça.
Além disso, é preciso entender o papel do mercado na condução desses processos, que pode e deve ser parceiro do estado nessas ações, mas ele sempre vai atuar e intervir em uma perspectiva de mercado, enquanto o estado deve agir e se movimentar em uma perspectiva garantidora de direitos, voltado ao interesse público, sempre olhando para as populações de renda mais baixa. O poder público precisa estruturar uma política pública de habitação que dialogue com os territórios e enxergue os imóveis em potencial, entendendo suas características e aptidões.
Ao falar sobre sugestões em soluções habitacionais após desastres, como o que atingiu o Rio Grande do Sul, a arquiteta e urbanista afirma que ignorar os planos habitacionais desenvolvidos e não dar continuidade a essas políticas públicas é uma irresponsabilidade. “Toda vez que o estado não trabalha com a prevenção, ele precisará, futuramente, trabalhar com os danos. Antes de tudo, precisamos que os programas da habitação social funcionem e sejam efetivados. O poder público não pode abandonar os planos de habitação. Os estudos devem ser feitos, analisados, os planos devem ser criados, efetivados e monitorados.”
Karla também completa: “por sorte, após alguns meses, o número de desabrigados diminuiu, mas ainda existem famílias sem suas casas e que não têm para onde voltar. O que precisa ser feito agora é olhar para estes territórios de uma forma mais programática. Tem lugares que foram devastados e não comportam uma realocação de todas famílias. Não é possível realocar um bairro inteiro em empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida, por exemplo. Quando as populações mais pobres ocupam encostas de morro, locais alagáveis e sem segurança é por serem os espaços que sobram nas cidades, e isso acontece porque os planos diretores não são utilizados com o objetivos de produzir uma cidade mais justa. É dever dos governos garantir moradia digna”, finaliza.
Trazendo casos de São Paulo, Julia Moretti, doutora em Direito e coordenadora regional sudeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), destaca que é preciso trabalhar para que exista um regime jurídico que fomente a manutenção de prédios pré-existentes, patrimônios edificados nas cidades brasileiras. “Isso é uma lacuna no Estatuto da Cidade. Precisamos colocar o componente de justiça socioambiental nesta equação, e este modelo de retrofit que vem sendo montado, não apenas na cidade de São Paulo, certamente não é um modelo para gerar inclusão. Primeiro que, no arranjo normativo feito em São Paulo, a gente vê um incentivo e um fomento a uma produção basicamente de mercado, que coloca a habitação como uma mercadoria que circula nos circuitos financeiros.”
Julia também fala sobre as dificuldades impostas pelas exigências dos editais na cidade de São Paulo, exigências essas que são muito rigorosas em relação a ter a propriedade do imóvel e, no caso dos movimentos ou das áreas que são ocupadas para a moradia, a dimensão do conflito fundiário é negligenciada, desta forma, a propriedade é um primeiro obstáculo a ser enfrentado. “No primeiro edital, a gente teve só um projeto de movimento que foi apresentado, e o movimento sequer foi habilitado por problemas técnicos.”
Além disso, a advogada destaca outros dois obstáculos. “Outra questão é a comprovação da capacidade econômica para custear todas as obras de uma vez só. Isso é o requisito da lei do retrofit, e é uma das questões que eu tenho como um ponto negativo. Então, a gente teria que lutar para que ele pudesse ser trabalhado junto com a autogestão, em uma dimensão que também seja faseada como efeito da regularização. Portanto, temos que colocar a lógica da regularização e do direito à moradia como eixos centrais de análise.”
Uma segunda etapa é ter o projeto licenciado. Para isso, primeiro precisa-se ter a propriedade e depois um projeto completo, não podendo seguir uma lógica de melhoria progressiva e qualitativa de um edifício. “Quando falamos sobre manutenção de prédios antigos, temos que ter cuidado, não podemos exigir regras novas para fazer intervenções em prédios antigos. Temos pouca bagagem sobre isso e muito menos bagagem que nos permita trabalhar de uma forma que gere justiça socioespacial”, reforça a profissional.
Para concluir, Moretti destaca as mudanças ao longo dos anos. “Então, os tempos são muito diferentes. A legislação é inadequada para atender à realidade, seja porque exige obras de uma só vez, seja porque trabalha com essa ideia, na verdade, de transformação completa de um edifício, ela acaba fomentando um outro modelo de negócio, que é um modelo que coloca a moradia de alta renda para circular no mercado de aluguéis.” A advogada também reforça a importância de políticas de monitoramento dos efeitos da gentrificação nas cidades e na sociedade. “Temos uma enorme produção imobiliária, e a lei do retrofit conseguiu acelerar as obras, dando incentivo fiscal, reduzindo o tempo de aprovação das obras e jogando dinheiro para determinados subsídios, porém, o mercado se apropriou disso para aumentar seus ganhos, trazendo novas populações, populações com rendas mais altas, no lugar de auxiliar as populações que mais precisam”, conclui.
A presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), arquiteta e urbanista Andréa dos Santos, reforça que o papel de prédios públicos que estão subutilizados é servir à população, cumprindo sua função social. “Queremos sim que os prédios sejam requalificados, porém, nosso pensamento é que eles devem ser destinados para quem precisa, às famílias sem moradia, e não servir para o mercado imobiliário gerar mais renda para si. Estes imóveis devem ser usados para reduzir o déficit habitacional. A requalificação urbana e os imóveis abandonados devem ser objetos de uma política pública de moradia, servindo de uso para habitação popular às famílias de renda mais baixa”, explica a presidente, reforçando que moradia digna e segura é um direito da população.
Foto: Gustavo Mansur