Projetar também é reescrever a história

Numa sociedade carente de recursos e educação em que falar de patrimônio histórico torna-se uma tarefa cada vez mais árdua, arquitetos e urbanistas assumem papel de agentes de preservação. Profissionais que dedicam seu trabalho ao legado deixado por gerações desafiando o descaso do poder público e da própria sociedade. Entre eles, está a arquiteta e urbanista Maria Josefina de Vasconcellos, mais conhecida como Jô Vasconcellos, uma mineira nascida em Belo Horizonte (MG), que trabalha em um dos berços da memória brasileira.  Em 2009 e 2017, ela foi contratada de forma terceirizada para realizar dois projetos arquitetônicos para reconstrução de espaços destruídos no município de Mariana (MG). Povoados diferentes com destinos parecidos: ambos viram suas capelas destruídas. Uma pela lama no trágico rompimento de barragem em 2015 e outra pela simples ação do tempo, que somada ao descaso com o patrimônio, resultou na derrubada da edificação por perigo de desabamento.

A tragédia da lama em Mariana levou 19 vidas, casas e a capela da comunidade, que estava de pé desde o século 19. Para um distrito com uma população estimada de 600 habitantes, a igreja representava o coração da região, onde eram realizadas as festividades, os batismos e os velórios. Com o desastre, sobraram apenas as bases da edificação e o chão, construído a partir das campas do cemitério. O desafio de recontar parte dessa história foi parar nas mãos de Jô. O resultado do projeto é um bunker – estrutura fortificada e resistente – a ser construído em concreto misturado com a lama do local. Para manter a originalidade da obra, a estrutura foi projetada para ser dividida em dois ambientes: um espaço religioso para a realização de missas e eventos, e um memorial de forma a eternizar a história da comunidade. Dentro da edificação, um ambiente foi dedicado aos utensílios abandonados e endurecidos pela lama, como roupas, panelas, sapatos e outros. O caminho que dá acesso à entrada prevê uma rampa que passa pelas ruínas destruídas, permitindo que o trajeto seja feito recordando tudo o que foi perdido em Mariana. “O sofrimento faz parte da nossa história. É importante conhecer o passado para nunca mais repetir esses erros no futuro”, reforça a arquiteta e urbanista.

Na Capela de Santana, localizada no Morro do Gogo, a destruição foi motivada pela precariedade da estrutura, que há anos necessitava de restauro. A igreja, que existia desde o século 18, foi vendida a uma empresa privada e acabou sendo derrubada na década de 1960. Mais tarde, peças históricas desta construção foram entregues à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que as guardou em um galpão. A comunidade com cerca de 1500 pessoas – que ficou sem seu único espaço religioso – conseguiu junto ao Ministério Público, em 2008, que elas fossem devolvidas. A responsabilidade de montar esse quebra-cabeça foi assumida pelos arquitetos e urbanistas Jô Vasconcellos e Altino Caldeira, que receberam a confiança e aval dos moradores. O projeto tinha dois problemas principais: a única memória da obra era um recorte antigo de jornal e os pedaços devolvidos à comunidade não pertenciam apenas à Capela de Santana, mas também a outras igrejas do Estado que passaram por situações semelhantes.

A proposta foi desenvolvida com base na anastilose, técnica de restauração em que se reagrupam as partes existentes, utilizando, se necessário, novos materiais. O resultado foi uma nova capela projetada com elementos da obra antiga e com a volumetria original da edificação em concreto branco e sem ornamentos, que trouxeram a alma da igreja do século 18. A parede atrás do altar foi planejada em vidro transparente, possibilitando uma vista para as montanhas da região. No entanto, apesar do projeto ter sido finalizado em 2009, a construção segue engavetada no governo estadual.

Os trabalhos em Mariana contam um pouco sobre a trajetória profissional de Jô Vasconcellos, que, ao longo dos anos, estabeleceu uma relação especial com a preservação da história através da arquitetura. Muitos de seus projetos navegam pela área da cultura e da museografia. Uma das maiores realizações da sua carreira é o Museu da Cachaça, em Salinas (MG), considerado um dos dez melhores do mundo pelo site ArchDaily. A cidade de Salinas é uma das maiores fabricantes de cachaça artesanal do Brasil, tendo em seu leque marcas mundialmente conhecidas. A estrutura do projeto foi pensada com o intuito de resgatar o caráter público e social que um museu deve conter. “O respeito ao patrimônio é essencial para a sociedade e é papel dos governos se preocuparem com essa situação. Patrimônio é história e não um prédio velho”, pondera. Outros dois projetos considerados desafiadores que passaram pela prancheta da arquiteta são o Centro Arte do Grupo Corpo e o Centro Cultural Itamar Franco, que congrega as sedes da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, da Rádio Inconfidência e da Rede Minas de Televisão.

Aos 73 anos, Jô relembra com carinho do seu tempo de estudante, onde a ousadia e a curiosidade eram suas companheiras. Formada pela UFMG e com especialização em Restauro e Conservação de Monumentos e Conjuntos Históricos, a profissional acredita no poder da Arquitetura e Urbanismo para restabelecer a relação de pertencimento das pessoas nas cidades. “Devemos tratar o patrimônio e o meio ambiente como se fossem nossa própria casa, e o caminho para isso é a educação. Trabalhar o conhecimento sobre o morar, o viver e a mobilidade transforma a vida das pessoas”, explica.

Mãe de três mulheres e avô de duas meninas, Jô carrega consigo a saudade do seu grande amor e companheiro de projetos: o arquiteto e urbanista Éolo Maia, que faleceu em 2002. Com obras que viajaram o mundo e participação em bienais internacionais, a arquiteta e urbanista sente satisfação em compartilhar conhecimento, seja em palestras ou nas redes sociais.  Educação é a palavra-chave que Jô utiliza para reforçar o respeito ao patrimônio e à história. Segundo ela, o arquiteto sozinho não faz milagre, mas somado ao Estado, pode mudar o destino das cidades e de sua população.

Letícia Breda – Imprensa FNA

Foto Jô Vasconcellos: May Zircus

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