Por André Huyer – Arquiteto e Urbanista, Doutor em Planejamento Urbano e Regional, ex-servidor do Ministério Público do RS
O atual episódio das enchentes no Rio Grande do Sul revelou um aspecto extraordinário do povo brasileiro: a solidariedade! Desde as pessoas diretamente atingidas até outros muito distantes, todos imediatamente se prontificaram a prestar socorro e entraram em ação. Demonstração inequívoca de que predomina uma boa índole no brasileiro. Dos menos afortunados até os mais abastados a mobilização foi imediata e sem questionar eventuais responsabilidades ou obrigação de ajudar ou não. A consciência geral da gravidade da situação e da necessidade de agir foi total.
Quanto ao fenômeno climático em si, na realidade era só uma questão de tempo para que um evento acima da média se apresentasse. Após a enchente de 1941, que atingiu a cota de 4,76m (3,00m é a cota do nível do piso do cais do porto), foram feitos estudos e foi construído um sistema de proteção contra cheias, cuja cota máxima é 6,00m. Ou seja, foi previsto que poderia ocorrer uma cheia de até 6,00m de altura. Depois de décadas de tranquilidade em 2015 uma cheia “lambeu” o cais, chegando a 2,96m. Mas ano passado, pela primeira vez uma cheia ultrapassou a cota de inundação, os 3,00, atingindo 3,46m. O sistema de proteção teve que ser acionado em seus componentes móveis: as comportas do Muro da Mauá. Que não funcionaram de maneira eficaz, tendo sido visíveis vários problemas de manejo e de vedação, que permitiram a entrada de água da inundação na área que devia ser protegida.
O alerta havia sido dado, pela própria natureza. Mas prosseguiu o descaso com o sistema de proteção contra as cheias. Apesar dos antecedentes, de todos os alertas de que estamos passando por uma severa mudança climática, foi realizada a concessão da área do Cais Mauá para a iniciativa privada, com o condicionante de que o Muro fosse removido! Teria que ser substituído por um sistema alternativo, a ser desenvolvido…
Enfim, na capital gaúcha foi colhido o que foi semeado. Para quê gastar dinheiro na manutenção de um sistema desacreditado? Se a ideia era “devolver o Guaíba aos seus habitantes”, acertaram em cheio, ou, em cheia, desculpam o trocadilho.
Há outro aspecto pouco comentado. Quanto custaria hoje construir um sistema de proteção contra as cheias como o de Porto Alegre, com todos os 68km de diques, 23 casas de bombas, 14 comportas, 2,6km de Muro da Mauá, etc.? Arrisco dizer que bilhões de reais! Então o Estado faz um investimento desses e depois ele é atirado ao descaso. Apesar do Município ter o compromisso contratual de fazer sua manutenção, como está muito claro na cláusula quarta do contrato no qual o sistema foi transferido do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS – hoje extinto) para a prefeitura de Porto Alegre:
Cláusula Quarta – O MUNICÍPIO, acorda em receber as obras referidas na Cláusula Segunda, comprometendo-se a mantê-las em perfeitas condições de funcionamento, limpeza e conservação, e sem qualquer ônus, presente ou futuro para o DNOS.
Onde entram os arquitetos nessa situação? Entram junto com os demais técnicos científicos, que não são escutados, cujas orientações não são seguidas. Por motivações que não vem ao caso discutir aqui, a área científica acadêmica tem sido muito maltratada nas últimas décadas. O seu descrédito tem sido construído por vários atores, que tem sido muito bem-sucedidos nessa empreitada. Nos tempos de Nicolau Copérnico era a igreja que julgava serem hereges as pessoas das ciências. Hoje esse fenômeno novamente ocorre, mas não é mais a igreja que quer jogar na fogueira as pessoas das ciências, junto com as universidades. Confundem ciência com ideologia. Agora pagamos o preço.
E vamos continuar pagando, pois os alertas dos arquitetos e urbanistas em questões de planejamento urbano, assim como os alertas de questões climáticas dos biólogos e colegas da agenda verde, demonstram as consequências do que virá, porém em longo prazo. Então é fácil ignorar agora o que é alertado, pois os efeitos não ocorrem de imediato. Mas virão.
Dentro desse contexto, enquanto a “máquina pública” e as carreiras de seus servidores são desmontadas, a prefeitura se colocava como se fosse uma campeã das “cidades resilientes”, mas não tinha nem monitoramento do nível das águas do Guaíba.
Está na hora de voltar o debate a respeito de que em órgãos governamentais técnicos os cargos de direção sejam exercidos por técnicos, e não por indicados políticos. Mas, o que se vê é cada vez menos órgãos governamentais técnicos, que são os que podem trabalhar na prevenção dos efeitos climáticos, assim como dos efeitos nefastos das urbanizações descontroladas. Enfim, a diminuição do Estado anda de mãos dadas com o ataque contra a ciência. É bom que essa questão seja revista. As consequências estão aí, inundadas pela realidade. Que a solidariedade espontaneamente manifestada nessa tragédia anunciada também acolha, de agora em diante, e com seriedade, os posicionamentos técnico científicos.