Olhar para a produção, não só para o produto

Vitorya Paulo/Imprensa FNA

O serviço de um arquiteto e urbanista no Brasil é, em alguns casos, desconhecido. Seja pelo não entendimento da importância dos profissionais da área ou pela falta de condições econômicas, a maioria das pessoas opta por produzir suas próprias casas sem assistência. É essa auto-produção, para a arquiteta e urbanista Silke Kapp, que merece maior atenção dos profissionais e pesquisadores da área. Doutora em Filosofia, Silke é criadora, ao lado de alguns colegas, do grupo de pesquisas Morar de Outras Maneiras (MOM), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Com o grupo, dedica-se a estudar a produção de moradias, o que considera vital para entender a realidade do morar no Brasil. “Quais são os processos da produção? Quem está envolvido? Os arquitetos vêm apenas discutindo o produto”, analisa. Para a professora, presta-se pouca atenção ao que acontece antes ou às circunstâncias em que o espaço é produzido. “Arquitetos e urbanistas deixaram a produção, sobretudo a esfera do canteiro, para um discurso puramente técnico, via de regra muito alinhado com a construção como produção capitalista”, pontua.

Confira a entrevista completa com a arquiteta e urbanista:

Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA) – Qual é a diferença entre os conceitos de produção e de produto e por que fazer esse recorte?

Silke Kapp – O campo da arquitetura se ocupa bastante das características dos produtos e de seus efeitos na recepção ou no uso: função, forma, expressão, fenomenologia, ergonomia, ambiente-comportamento etc. Todas essas vertentes dizem respeito ao que acontece depois que uma arquitetura estaria ‘pronta’. Presta-se pouca atenção ao que acontece antes ou às circunstâncias concretas em que o espaço é produzido, social e materialmente. Olhar pelo lado da produção significa assumir que espaços são transformados continuamente, e dar ênfase às práticas que geram decisões e ações nesse sentido, desde o âmbito político até o canteiro de obras. Arquitetos e urbanistas deixaram a produção, sobretudo a esfera do canteiro, por um discurso puramente técnico, via de regra muito alinhado com a construção como produção capitalista.

FNA – Aqui no Brasil, como você e seu grupo de pesquisa têm observado a formatação dessa produção?

Silke – Os capitais em geral — no caso, os de construção e incorporação, fundiário, financeiro — são tanto mais agressivos quanto mais frouxas as leis e os mecanismos de controle de uma sociedade. Isso tem se tornado extremo por aqui. Nossas cidades estão a um passo da inviabilidade, nossos recursos naturais numa avalanche de destruição absurda. E a sociedade em geral parece não ter compreendido que ela pode colocar limites à voracidade desses capitais. Repete-se sempre a premissa de que maior rigor nas regras urbanas e ambientais, nos códigos de obras etc. significaria perder ‘investimentos’, mas a história mostra que isso não é verdade. Curiosamente, os responsáveis por crimes ambientais como o de Brumadinho ou Mariana passam férias — ou moram — em lugares onde ações desse tipo são interditadas.

FNA – A sigla MOM significa Morar de Outras Maneiras. Quais seriam as maneiras possíveis de “morar”?

Silke – Morar significa algo como habitar o planeta Terra. Inclui toda a produção do espaço ou, de modo bem amplo, a transformação do espaço pelo trabalho humano. Quais seriam essas outras maneiras não é algo que cabe a pesquisadores determinar. Quem tem que determinar isso são os diversos grupos sócio-espaciais, com autonomia para decidir, para agir e para se articular mutuamente. O horizonte é sua autonomia coletiva ou uma estado de coisas em que ninguém estaria submetido a uma produção do espaço na qual não tenha voz.

FNA – Como fazer o apoio e ampliação da autonomia coletiva dos grupos que produzem suas moradias, de fato?

Silke – Bom, essa é uma pergunta central para as nossas pesquisas, cujas possíveis respostas são mais longas do que caberia aqui. Estamos escrevendo, Ana Baltazar e eu, um livro para sintetizar nossos achados, debates, experimentos, erros e acertos ao longo dos últimos 15 anos, trabalhando com grupos muito diversos. Posso dizer que é uma assessoria baseada na mobilização, no combate a qualquer tipo de dependência dos técnicos ou profissionais e na criação de instrumentos ou interfaces que facilitam as discussões e ações pelos próprios grupos. No limite, uma assessoria técnica bem sucedida deveria tornar os técnicos dispensáveis.

FNA – Você acha que a Athis funciona no Brasil do jeito que está delineada hoje?

Silke – O problema que vejo na formulação do que se convencionou chamar assistência técnica é, justamente, seu caráter assistencialista. Ignora-se que o público-alvo dessa assistência é de pessoas que, com pouquíssimos recursos, produziram grande parte das nossas cidades. Não estão à espera de um profissional para salvá-los. Não faz sentido transferir para esse campo de atuação os procedimentos profissionais consolidados em projetos para clientes de uma elite, sejam particulares ou representantes de empresas ou do Estado. Com todas as boas intenções que certamente moveram a formulação da Athis, ela carece de um questionamento das práticas usuais. Assim, não surpreende que o foco da Athis esteja nas famílias, não em movimentos, associações, cooperativas ou mesmo grupos sócio-espaciais não organizados formalmente.

FNA – Como elaborar e fomentar o pensamento crítico dos arquitetos e urbanistas?

Silke – As universidades, sobretudo quando públicas, são lugares de privilégio porque oferecem a possibilidade de desenvolver pesquisas e discussões para as quais a rotina profissional deixa pouco lugar. Considero uma obrigação avançarmos nas perspectivas para além dessa rotina. Isso envolve, desde o princípio, estudantes de graduação e pós-graduação, que depois ocupam lugares no mercado e em órgãos públicos, fundam organizações, fazem diferença no debate geral. Ao mesmo tempo, sempre envolve também grupos externos, como organizações e comunidades de muitos tipos. Mas é um esforço de longo prazo, porque, diferente de dogmas e doutrinas, pensamento crítico não é um pacote pronto de conteúdos a fixar na cabeça das pessoas. É crucial o engajamento aberto, não doutrinário, de organizações profissionais como a FNA, o CAU e o IAB.

FNA – Qual leitura você indica para quem deseja refletir mais sobre esse o assunto?

Silke – No site de MOM ,temos uma seção de biblioteca, com muitos textos nessa direção, bem como as páginas de disciplinas que membros do grupo lecionam (Arquitetura como Interface e Teoria Crítica da Arquitetura) com extensas indicações bibliográficas. Acho que vale a pena dar uma olhada.

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