O olhar da arquitetura para as barragens brasileiras

Há cerca de seis anos contribuindo com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Gessica Steffens, 30 anos, conhece desde cedo os problemas enfrentados por pessoas que residem próximas dessas estruturas. A arquiteta é natural de Severiano de Almeida, município situado no norte do Rio Grande do Sul e atingido por construção de barragem, na qual o MAB – que tem o intuito de organizar e defender os direitos dessas populações – tem uma luta histórica.

Filha de agricultores familiares, Gessica se descreve também como uma agricultora em sua essência. Foi com o auxílio da família, a quem ajudava na lavoura aos finais de semana, que ingressou na primeira turma de Arquitetura da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) –  campus Erechim (RS). As políticas públicas de acesso ao ensino superior, como a interiorização das universidades federais e as cotas para escola pública, também tiveram papel fundamental em sua formação e história pessoal.

Em 2013, com o programa Ciências Sem Fronteiras, passou um ano na Austrália, onde aprendeu a falar inglês e cursou disciplinas de arquitetura e urbanismo. Entre agosto de 2018 e julho de 2020, com uma bolsa de estudos obtida por meio de uma luta histórica do MAB, morou em Diamantina (MG), onde realizou Mestrado Interdisciplinar em Estudos Rurais na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Atualmente, a arquiteta atua na secretaria operativa do movimento, auxiliando na construção da estratégia internacional de luta dos atingidos.

Em Severiano de Almeida, onde voltou a residir durante a pandemia, investe parte do seu tempo na implementação de atividades de transição agroecológica em um sítio que está adquirindo junto com o seu companheiro Giomar, estudante de agronomia e também agricultor.

Confira aqui a entrevista na íntegra:

Como você conheceu e passou a contribuir com o MAB?
Gessica: O primeiro contato com o trabalho do MAB foi ainda no ensino fundamental. Lembro-me das explicações sobre as privatizações do país na década de 1990 e, mais tarde, das lutas para a implementação de um campus da  Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) aqui na região norte do Rio Grande do Sul. Em 2016, já no final da graduação, pessoas próximas estavam participando de um projeto do MAB relacionado à pauta de saúde dos atingidos. No mesmo ano, passei a contribuir na secretaria operativa. O MAB tem uma atuação histórica aqui nessa região, pois há diversas barragens construídas na Bacia do Rio Uruguai (e outras grandes sendo planejadas). No decorrer da década de 1970, quando houve o boom desenvolvimentista, foram construídas muitas represas e aconteceram muitos conflitos e violação de direitos humanos em todo o país. Foi um tempo de reorganização e construção de diversos movimentos sociais, entre eles a Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB) aqui na região norte do estado, um dos lugares que mais teve enfrentamentos dentro dessas pautas. Essas comissões, que se formaram em diversos lugares do país, obtiveram muitas conquistas, como vários reassentamentos e indenizações para as famílias. Depois de um tempo, esses movimentos realizaram encontros nacionais e decidiram ter esse caráter de unidade, com os mesmos princípios. Assim foi criado o Movimento dos Atingidos por Barragens, em 1991, em seu aspecto nacional. Nossa preocupação é de que não há amparo legal e definição clara de quem são essas pessoas atingidas, quais seus direitos, quais as formas de indenização justa. É uma luta bem atual, inclusive. Hoje temos em tramitação no Senado um projeto para instituir a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB).

Como aconteceu a realização do seu mestrado em Minas Gerais?
Gessica: Em uma luta histórica de reparação dos passivos sociais e ambientais pela construção de barragens, o MAB, através de uma associação parceira, conseguiu um projeto de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) junto à CEMIG para o Norte e Nordeste de Minas Gerais, na região do Vale do Jequitinhonha. Dentro desse projeto, chamado Projeto Veredas Sol e Lares, estavam previstas bolsas de estudo para nível médio, iniciação científica, mestrado e doutorado. Fiz o processo seletivo do programa de pós-graduação e fui para lá em agosto de 2018 contribuir com a implementação desse projeto na região. O estudo da minha dissertação foi em um dos reassentamentos oriundos da implementação da barragem de Setúbal em Jenipapo de Minas e teve o intuito de aproximar o debate da estruturação do modelo energético brasileiro e a violação do direito humano à moradia adequada. A condição de vida naquele lugar é precária e faz pensar o quanto precisamos melhorar (em todos os aspectos) quando se trata de deslocamentos compulsórios neste país.

Mariana e Brumadinho marcaram a história do Brasil. Como foi a atuação do MAB durante as tragédias?
Gessica: Mariana e Brumadinho são casos emblemáticos. Até então, o MAB tinha um trabalho voltado para as barragens de água, que são a base da nossa matriz energética. Quando aconteceram os rompimentos das barragens de rejeito de mineração foi um contexto totalmente novo, desafiador e difícil, visto o número de mortes, desaparecimentos, a toxicidade dos metais na lama e o caráter de negação do crime por parte das empresas multinacionais, que dominam o monopólio do minério. Até hoje não há responsabilização criminal pelas mortes, por exemplo. Em um primeiro momento, nos somamos à rede de solidariedade, que vinha de várias partes do país e do mundo, e depois seguimos com o trabalho organizativo, informativo e de luta por direitos nas Bacias do Rio Doce e do Rio Paraopeba como um todo, não apenas na área onde houve de fato o rompimento.

E hoje, como está a recuperação dessas cidades?
Gessica: Já são 6 anos de trabalho em Mariana e 3 em Brumadinho,  e apesar de muita propaganda midiática dizendo que está tudo bem nessas regiões, a realidade não é bem assim. São poucas as casas dos reassentamentos que estão concluídas, a participação dos atingidos nas mesas de negociação entre o estado e as empresas é ínfima e a perseguição/criminalização dos movimentos sociais populares é grande. Isso também é reflexo da condição de precarização da vida e perda de direitos que estamos vivendo no Brasil nos últimos tempos. Infelizmente, esses crimes que aconteceram em Minas Gerais não fazem parte de uma realidade isolada, há outras barragens no Brasil com baixa fiscalização e risco iminente de rompimento. De acordo com o Relatório de Segurança de Barragens (2020), por exemplo, apenas 11% dos empreendimentos submetidos à Política Nacional de Segurança de Barragens possuem revisão periódica e há 112 barragens consideradas em situação crítica no país.

Há uma articulação internacional acerca desse tema?
Gessica: Sim. Nós vivemos, enquanto países do Sul-Global, o que é materialização do colonialismo, do racismo, da violência nos territórios. Não é realidade somente brasileira e portanto precisamos ter laços fortes de formação, enfrentamento, denúncia e solidariedade internacional. A proposta é construirmos coletivamente um movimento internacional de atingidos por barragens, onde se possa também propor alternativas (e mostrar as que já existem) de construção de um modelo energético popular. No momento, as duas frentes principais de articulação é a construção do MAR – Movimiento de Afectados por Represas en América, que pretendemos expandir para outros continentes também, e a Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmontar o Poder Corporativo e Por Fim à Impunidade – chamada comumente de Tratado Vinculativo da ONU, em que se pretende estabelecer parâmetros para responsabilização das empresas transnacionais pela violação de direitos humanos nos territórios em que estão envolvidas. No final de 2021, em um esforço coletivo de síntese e escrita, publicamos a primeira edição da revista enMARcha, da qual participam do conselho editorial movimentos do Brasil, Panamá, Chile, Colômbia e Cuba. A ideia é que ela seja publicada periodicamente, trazendo diferentes artigos e reflexões a partir da realidade de cada país.

Você também desenvolve um projeto de transição agroecológica.  Como é este trabalho e quais os planos para o futuro?
Gessica: Atualmente o MAB e o sítio que estamos adquirindo aqui em Severiano de Almeida ocupam a maior parte do tempo e são de um aprendizado e crescimento constantes. A intenção futura é fortalecer/fomentar os trabalhos vinculados à produção dos habitats rurais, tema ainda pouco explorado dentro da arquitetura. Pensamos em abrir um escritório por aqui, encontrar pessoas ou organizações que estejam interessadas nesses temas transversais à arquitetura, aos direitos humanos, à produção agrícola (orgânica e agroecológica) e à preservação ambiental, independentemente da localização geográfica, para formar parcerias de trabalho. Há aproximadamente 4 milhões de pessoas trabalhando na agricultura familiar hoje no Brasil e muitas outras que gostariam, mas não sabem por onde começar. Não podemos cair no discurso superficial de que “não tem ninguém” nessas regiões, inclusive é importantíssimo olharmos para a questão agrária brasileira para entendermos a formação desigual das nossas cidades. Além do mais, há diversos métodos e ferramentas metodológicas que podem nos auxiliar nesses processos, tais como as próprias do zoneamento urbano e regional, da permacultura, das DRPs (Diagnóstico Rural Participativo), da educação popular. Enfim, é um projeto de vida, que com o avanço da pandemia e da crise sanitária que estamos vivendo, faz rever os valores, as formas de trabalho e as possibilidades de contribuição teórica e prática que temos.

2 comentários em “O olhar da arquitetura para as barragens brasileiras”

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