Nadia Somekh: cartão vermelho para a desigualdade

Ela queria ser juíza de futebol e, desde muito cedo, carregava no coração a determinação para apitar uma partida sem espaço para a injustiça e para o machismo.  Com a força de quem nasceu no Cairo no pós-holocausto, a pequena Nadia Somekh deixou o Egito aos três anos e adotou o Brasil como sua pátria. O amor pelas artes, a sutileza da dança e a precisão do desenho foram a inspiração de uma vida e forjaram um caminho de criatividade que a levou à Arquitetura e Urbanismo. A paixão pela fotografia marcou o início da carreira, quando corria o centro de São Paulo (SP) em busca de imagens e do casamento perfeito entre o patrimônio histórico e o planejamento urbano.

Mas a menina inquieta que jogava bola com os garotos nas ruas de Santos (SP) não abandonou o peito dessa mulher, que cresceu carregando um tipo de “mal-estar”, uma inquietude contra tudo e todos que impedem o ser humano de sonhar. Sejam eles mulheres, homens, brancos ou pretos, pobres ou ricos.

Disposta a ter sempre a bola em jogo, sabe quando é hora de recuar e quando chega o momento de avançar ao ataque. Eleita a primeira mulher presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), carrega nos ombros a responsabilidade de liderar um movimento por cidades mais democráticas, pela valorização da profissão e do papel da Arquitetura e do Urbanismo como agente de saúde pública.

Nesta entrevista exclusiva à FNA, a arquiteta e urbanista Nadia Somekh falou sobre seus projetos, sobre os dilemas das cidades em plena pandemia de Covid-19 e sobre seus grandes amores: os sobrinhos. Afinal, a Tia Iaiá é muito mais do que uma professora de renome, ex-presidente do Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), líder de um dos conselhos profissionais mais reconhecidos do país e a primeira diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Nadia Somekh é a tia que estampa os quadros dos sobrinhos na parede de casa com orgulho, enche os olhos d’água quando lembra da trajetória de seus pais e tios e deixa de lado o amor incondicional pelo Santos para levar o sobrinho a um tour pela Arena do Corinthians. A mesma que relata a dificuldade de ser mulher em um tempo em que os homens ainda têm prioridade de fala e que enche os pulmões com força para enfrentar os desafios de um Brasil onde as desigualdades se acentuam e que, a cada dia, precisa de Mais Arquitetos e mais gente disposta a lutar pelo bem social.

 

Desde menina, Nadia carrega uma inquietude contra tudo e todos que impedem o ser humano de sonhar

 

Nadia é a tia que estampa os quadros dos sobrinhos na parede de casa com orgulho

Confira aqui alguns trechos da entrevista com a arquiteta e urbanista:

Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA) – Em seu livro A Cidade Vertical e o Urbanismo Modernizador, você faz uma análise da ação do “urbanismo modernizador” e seus efeitos na exclusão social na década de 20. Como você avalia a situação do hoje?
 Nadia Somekh O urbanismo modernizador está pior do que nunca. Em meu livro falo sobre os anos 20, que é a origem da exclusão. Em 1956, quando a indústria automobilística chegou ao Brasil, criou-se uma lei que tirou dos mais pobres o direito de usar pequenos apartamentos. Essa lei espalhou a verticalização. O BNH ampliou a elitização porque foi criado para produzir habitação popular e acabou produzindo habitação para as classes médias urbanas. Hoje, como presidente do CAU, quero atender a essa parte da cidade que foi esquecida, e que, na pandemia, tem escancaradas as desigualdades. Agora, quem morava mal tem que ficar nessa casa que não tem banheiro, nem condição de habitualidade. Atualmente, 25 milhões de moradias no Brasil são precárias. Nossa gestão quer trabalhar na perspectiva de levar a Athis às populações mais pobres. Mas é um trabalho imenso termos um olhar para a cidade excluída.

FNA – Você acha possível a criação de uma união nacional de entidades para incorporar a luta pelo espaço urbano e pela moradia? Um movimento que integre inclusive outras profissões?
Nadia Em um primeiro momento, estou tentando unir os arquitetos, que, infelizmente, não são nada unidos. Temos inclusive a ação do CEAU, no qual buscamos uma coesão que, muitas vezes, é difícil. Mas estamos tentando. A diversidade é muito rica e estou exercitando a escuta. Recentemente, estive em reunião no Congresso tentando sensibilizar os parlamentares sobre a importância dos conselhos e os riscos de sua extinção. Também estive com o Confea tentando mostrar que não precisamos brigar em relação ao dilema das atribuições profissionais porque há atribuições exclusivas de arquitetos, assim como há as dos engenheiros.  Segundo pesquisa do CAU, 85% das edificações no Brasil ainda são feitas sem a presença de engenheiros e arquitetos. Propusemos uma aliança, para trabalharmos juntos.

FNA – Apenas 38% dos municípios brasileiros têm arquitetos. Como é possível incentivar a valorização da profissão em meio a uma sociedade tão desigual em que faltam muitos dos direitos básicos à população? Como o CAU pode ajudar a mudar essa realidade?
Nadia Quando cheguei ao CAU como conselheira na primeira gestão, entrei na Comissão de Legislação com o objetivo de ampliar a valorização dos arquitetos nos municípios por meio de uma lei que, mais tarde, disseram ser inconstitucional. Recentemente, estive no Congresso Nacional e já tem deputado que comprou essa ideia de fazer uma legislação se contrapondo ao prefeito de Porto Velho que extinguiu os cargos de engenheiros e arquitetos para fazer corte no orçamento. Como pode ter qualidade uma cidade sem arquitetos e engenheiros? Por isso, estamos batalhando para que todos os municípios tenham arquitetos nas administrações municipais. Em outra frente, estamos iniciando o programa Mais Arquitetos, que busca conscientizar a população mais pobre de que ela tem direito à Athis. Por meio de influenciadores, estamos falando com a população. Mas antes, é preciso sensibilizar os gestores públicos para a relevância de implementação dessa política. Primeiro, iniciaremos com os mais carentes e depois vamos trabalhar com a classe média, uma vez que 45% dessa população faz reforma sem arquiteto. Para se ter uma ideia, quando a gente procura no Google “reforma de casa” aparece uma lista de pedreiros. Arquiteto quando aparece é aquele com uma Mont Blanc na mão. Temos um compromisso social. Os arquitetos precisam ser formados para o trabalho que o Brasil necessita, ou seja, arquitetos pé no chão, que se comprometem com a questão social no Brasil. O CAU/RS implementou um projeto que é um exemplo e que quero ter no Brasil inteiro: nenhuma casa sem banheiro. Se começar por aí eu já fico feliz.

FNA – Como o CAU avalia a necessidade de revisar a formação dos arquitetos e urbanistas de forma que as universidades formem os profissionais de que o Brasil precisa?
Nadia – É preciso compreender quem estamos formando e a qualidade das 875 escolas de Arquitetura que temos hoje no Brasil. Recentemente fui questionada se estamos formando decoradores porque a maioria das RRTs emitidas refere-se à arquitetura de interiores. É isso que a gente precisa? Não. Quer fazer arquitetura de interiores? Faz. Mas é o que o Brasil precisa? Não. Há a questão da educação a distância que vemos com ressalvas, mas precisamos colocar o bloco na rua: o problema não é a tecnologia, é o conteúdo. A dúvida é: os  cursos existentes têm qualidade? Não sei. Será que esses cursos têm a qualidade que precisamos? Os arquitetos têm que entender que são agentes de saúde pública, e o que vemos hoje nas universidades é que não estamos formando profissionais de saúde.

FNA – Como CAU acompanha os movimentos de precarização das relações de trabalho do arquiteto e urbanista, como a uberização e os projetos de estímulo à pejotização?
Nadia – Conto com o apoio da FNA nessa luta. Estamos compondo força–tarefa para tratar da desprecarização do trabalho dos arquitetos. Uma das questões que precisamos ajustar é a tabela de honorários e há realidades salariais que precisamos conhecer. Temos também arquitetos que querem ser MEI, que querem ser PJ para escamotear o salário mínimo, prejudicando a todos. Essas questões têm que ser enfrentadas. O que precisamos é abrir um campo grande de trabalho e acho que conseguiremos isso com a Athis. Temos que ganhar escala e trabalhar a valorização dos arquitetos e urbanistas. Carecemos construir uma demanda geral e reverter a visão elitista do trabalho do arquiteto. Precisamos mostrar o quanto somos necessários à população toda e isso está na revisão do planejamento do CAU para a próxima década. Temos que ampliar a demanda pelo trabalho de arquitetos. Somos necessários, mais do que nunca.

Texto: Carolina Jardine
Fotos: Nadia Somekh/ Arquivo Pessoal 

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