O ensino transforma vidas! A arquitetura e urbanismo também. Lecionar exige dedicação tal qual a elaboração de um projeto, desde seu início até seu fim, inspirando pessoas dentro e fora das salas de aula. Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre e doutora pela Universidade de Brasília (UnB), Liza Andrade compartilha e aproxima vivências que mesclam o saber e o fazer a dar subjetividades às cidades e transformá-las a muitas mãos com a mais poderosa ferramenta: a educação.
Professora no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (PPG-FAU/UnB), realizou diversos projetos quanto coordenadora de projetos de extensão universitária voltados à Assistência Técnica que sai dos grandes centros urbanos e se espalha nos territórios periféricos, rurais (assentamentos da reforma agrária), quilombolas (território kalunga/Quilombo mesquita), ribeirinhos e indígenas, como a Aldeia Urbana Ahain Aan. Tal feito aumenta a presença da arquiteta e urbanista nos mais diversos campos de atuação.
Liza busca, portanto, estabelecer o diálogo sobre a produção do conhecimento junto às comunidades nos territórios populares com a universidade cidadã por meio da especialização de qualidade para promover nas escolas de arquitetura e urbanismo uma mudança de pensamento capaz de criar ações transformadoras para com o outro, logo a própria transformação do ensino.
A arquitetura e urbanismo sempre foi sua escolha? Conte mais sobre sua trajetória./Em sua carreira, quais os projetos que mais lhe orgulham?
Saí de Belo Horizonte há 24 anos e decidi mudar para a área acadêmica. Eu foquei mais na universidade cidadã e em como a arquitetura poderia ser mais acessível à população, sempre muito indignada com a profissão que ainda é muito elitizada.
Eu tento trazer isso para dentro da universidade, como tornar a nossa profissão mais popular, mais social, e luto constantemente. Com isso, a extensão foi a via que eu encontrei. Então, os projetos mais importantes são esses que a gente tem feito de forma coletiva ao longo desses anos todos.
O Grupo Periférico vai fazer dez anos no ano que vem, ele começou em 2016. Antes, passei pelo Escritório Modelo Casas, fiquei oito anos orientando os estudantes do EMAU até criar o grupo, que hoje é um laboratório. Vi uma lacuna dos trabalhos finais de graduação, os Trabalhos de Conclusão de Curso, que tinham o potencial de fazer assessoria, ter a possibilidade de atender as comunidades no nível da formação, profissionalização e também na especialização e pós-graduação.
Começamos a mapear os lugares onde estávamos trabalhando, começou a surgir demandas de assessorias: ocupações urbanas em situações de injustiça ambiental e de riscos, ocupações culturais, no campo, ATHIS-rural, quilombolas e indígenas. Estamos trabalhando há mais de oito anos com territórios quilombolas, com assentamentos da reforma agrária. Ultimamente, fizemos um trabalho com os indígenas de uma aldeia urbana no Distrito Federal.
Recentemente, uma orientanda ganhou o Prêmio Meninas na Ciência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Um prêmio super difícil, entre centenas de meninas da graduação no Brasil, por justamente ter tido a oportunidade dentro do nosso grupo periférico, de ser uma pessoa da periferia, que teve voz, que pôde mostrar sua habilidade e de estar também nas comunidades e descobrir essa vocação. A importância vem muito disso: de todos saírem ganhando, tantos estudantes quanto as comunidades. É um aprendizado. É um co-aprendizado, vamos dizer assim.
Os projetos são todos importantes construídos coletivamente. Eu acredito muito nessa educação libertária do Paulo Freire, mas também no interacionismo sociotécnico, que os estudantes aprendem mais ao interagirem com as comunidades com compromisso solidário e gestos amorosos.
Com as Diretrizes Curriculares Nacionais sendo atualizadas, como manter a democratização do ensino?/Quais foram as lições mais importantes aprendidas com seus alunos?/Como incentivar os estudantes a participarem de projetos de extensão, especializações e atividades em campo?
A extensão é muito presente. O tempo todo, não separo pesquisa de extensão. A democratização do ensino vem muito nessa linha de trazer os jovens para dentro da universidade, sejam da periferia, sejam camponeses, quilombolas, indígenas…para que eles tenham um lugar na universidade. É incrível o desempenho e dedicação dos estudantes.
Com isso, são importantes as cotas, a questão racial. A gente também valoriza a “extensão ao contrário”, que essas pessoas aqui dentro possam também mudar o pensamento. E as diretrizes curriculares, vamos contribuindo na medida que a gente vai fazendo trabalho junto com as comunidades, isso vai gerando inovação, uma prova disso são os inúmeros prêmios alcançados pelo grupo.
As lições mais aprendidas com meus alunos é que ao pegar um trabalho, uma demanda, nem sempre a gente tem domínio da situação. A gente tem que desbravar, ter coragem. Temos que começar ouvindo, aprendendo com as pessoas do lugar, arriscando.
E acredito que o maior aprendizado é esse, que a gente aprende fazendo, reflete e depois produz conhecimento. Essa troca dos estudantes com as comunidades e também com os professores gera transformação. E a gente vai aprendendo junto nessa “ciranda de ideias e ações”. Conseguimos criar a especialização no formato de residência multiprofissional, iniciado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) com a área de arquitetura, e aqui na UnB integramos com a as áreas de agroecologia, saúde e economia solidária, e isso é uma forma de incentivar eles a continuarem a estudar e ir nessa linha das assessorias técnicas.



O que torna o ensino especial para você?
Eu amo ser professora! Se perguntassem o que eu mais gosto de fazer, eu gosto de aprender e ensinar. Porque ser professora é aprender junto, é desbravar e construir coletivamente, é troca, é afeto. São as relações humanas, no final de contas, que importam mais. Termos solidariedade. Paulo Freire fala muito disso, do compromisso solidário, como mencionei antes.
É a gente sonhar junto com os estudantes: crescer, fazer e conquistar resultados importantes. Também é importante ter o reconhecimento pelo trabalho de dedicação nos territórios e qualidade de projeto como os inúmeros prêmios conquistados. Você olha para trás e vê a sua trajetória, que o objetivo está sendo alcançado, que todo mundo vai crescendo e vai ajudando também a desbravar, abrir portas para as pessoas que às vezes não tiveram oportunidades. Estudantes que eram da periferia, que às vezes não têm tanta oportunidade. E você também abre espaço para que esse estudante tenha outro jeito de fazer projeto, outro jeito que não seja só o que o “mercado” oferece. Quer dizer, você abre possibilidades de trabalhar com políticas públicas, assessorias. O ensino, para mim, é muito essa troca de ir aprendendo cada vez mais e conquistando espaços juntos.
O que mais lhe emociona ao lecionar e na arquitetura e urbanismo em si?
O que mais me emociona é ver as pessoas que nunca tiveram acesso à área de arquitetura e urbanismo sonharem que elas podem também ter uma casa bonita, e qualidade, confortável e arejada, uma rua que seja arborizada, com soluções baseadas na natureza, com jardins de chuva e hortas comunitárias, ou que esse bairro tenha ruas para as crianças brincarem, pracinhas e parques. As pessoas – ao se envolverem nos projetos e planos comunitários – vão percebendo que podem reivindicar lugares que geram e criam vida, lugares mais sustentáveis. Elas vão vendo que também podem reivindicar do governo essa melhoria, essa qualidade de vida. E isso me emociona muito.
Que esse conhecimento não fique só aqui dentro, mas que as pessoas se tornem pessoas que possam lutar por melhoria do seu habitat, melhoria do seu ambiente construído e também pensando na preservação dos ecossistemas, nas unidades de conservação das águas, lutar pela qualidade da água, pela redução de riscos. Tem muitos movimentos em que trabalho que lutam pela questão das águas no DF. Se não fossem as pessoas que cuidam das águas, como será o futuro incerto frente às mudanças climáticas?
É muito bonito essa construção de cenários que a área de arquitetura propicia, as pessoas enxergarem um futuro melhor e que elas podem lutar por isso.
Imagem: FNA/Arquivo Liza Andrade
Fotos cedidas por Liza Andrade