A arquitetura indígena que ensina e inspira

A casa é carregada de significado, simbologia e desempenha um papel importante na construção do ser humano em sua noção de espaço. Com isso, a arquitetura indígena ressignifica o local, representa a integralidade na relação homem-natureza a fim de contribuir para a revisão de conceitos e princípios dos atuais paradigmas socioculturais que envolvem a arquitetura e a sociedade contemporânea.

As habitações indígenas influenciam a maneira de projetar numa época em que a sustentabilidade está no foco de discussões de como enfrentar questões climáticas e ambientais, por meio do uso de técnicas construtivas passadas entre gerações, assim como afastar  a visão etnocêntrica e eurocêntrica da arquitetura para torná-la plural em sua totalidade. 

A influência do pensamento indígena (assim como o quilombola e ribeirinho) permeia a categoria por estar de acordo com aquilo que acredita como sustentável: uma arquitetura de impacto positivo, cujo projeto é apropriado pelo contexto, envolvendo toda a comunidade na construção de edificações e saberes.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 1,7 milhão de pessoas indígenas, representando 0,83% da população total do país. Das 5.570 cidades brasileiras, 4.832 têm moradores indígenas (86,8%). Contudo, a maioria da população indígena (63%) vive fora das terras oficialmente demarcadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Contudo, o apagamento e silenciamento sofridos por grande parte desses povos por conta da catequização feitas pelos jesuítas e grupos católicos contribuiu para uma perda significativa de construções vernaculares. A história, em conjunto com a arquitetura, têm trabalhado para reavivar tais habitações tradicionais para tornar os conhecimentos não indígenas ainda mais plurais, adotando práticas projetuais baseadas na forma de responder a demandas contemporâneas, conciliando adaptabilidade ao contexto, o diálogo com a comunidade, além de materiais e técnicas construtivas locais.

Para compreender a estrutura social, é preciso identificar as formas mais comuns de habitações indígenas.  As aldeias, também conhecidas por tabas, foram utilizadas em grande escala pelos índios tupis, e índios guaranis do sul do Brasil. Tais construções ortogonais formam redes de apoio e solidariedade, dispondo-se em malocas (espaços grandes divididos internamente pela estrutura do telhado, cujas separações se dividem em especializações, responsabilidades sócio-políticas e alianças) onde as famílias residem em ocas. A diferenciação das aldeias entre as diversas tribos é feita pela condição climática e a disponibilidade de materiais regionais, como cipós, palhas e madeira. 

Sua presença nos dias atuais se faz importante enquanto referência dentro de um processo integrado de resgate cultural, contribuindo para a valorização e o diálogo sobre ambientes e comunidades que habitam regiões que sobreviveram aos modelos ocidentais de desenvolvimento. A arquitetura dos povos indígenas deve, portanto, ser reconhecida e valorizada como parte basilar da própria arquitetura brasileira, trabalhando aldeias e cidades em conjunto para criar meios de habitação cada vez mais sustentáveis.

A Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) Paranoá Sul, localizada na cidade de Brasília, abriga a Aldeia Urbana Ahain Aan que, no segundo semestre de 2023, recebeu grupo de extensionistas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB) – entre estudantes, técnicos e professores –  para a realização de projeto de assessoria técnica de planejamento territorial cuja articulação com os povos indígenas se deu pela relação do território com a preservação dos ecossistemas a fim de promover a inclusão dessa população nas políticas habitacionais no Distrito Federal. Somente na capital do país, moram mais de 7 mil indígenas.

A Unidade de Conservação (UC) de uso sustentável próxima ao Lago Paranoá, região que no passado abrigava famílias indígenas desde a década de 1970 e nos anos de 1980 foram retirados da região e levados para a Cidade do Paranoá. O Paranoá Sul vem passando por um movimento de retomada multiétnica e territorial, estabelecendo em consulta pública com a participação da sociedade em geral encaminhamentos e trâmites legais para resguardar a presença indígena na região e garantir sua vivência nos espaços urbanos.

A solicitação à demanda do grupo indígena responsável pelo tal processo no território foi desenvolvida enquanto projeto participativo e colaborativo enquanto disciplina optativa em Prática de Escritório Modelo em Arquitetura e Urbanismo (PEMAU), contando com 17 estudantes inscritos e equipe de professoras: as titulares Liza Andrade e Vânia Loureiro, a doutoranda Luana Figueiredo e a pós-doutoranda Ariadne Moraes.

Organizados em mais de 13 etnias (Tapuia, Terena, Canela, Warao (Venezuela), Guarani, Krahô, Pataxó, Gavião, entre outros), os indígenas demandam a demarcação de áreas de cerrado para que possam ser preservadas a partir dos seus modos de vida, tendo em vista que ancestralmente cuidam do meio ambiente e se relacionam de maneira sustentável com a fauna e a flora.

De acordo com Liza, o projeto de arquitetura indígena “prevê não apenas área para ocupação de habitação dos indígenas, mas também realização de turismo de base comunitária, ou seja, um programa extenso voltado para os modos de vida e saberes das etnias envolvidas no território, que pode funcionar como mais um polo atrativo na região, levando em consideração o respeito à natureza local e a preservação do ecossistema, um projeto autônomo e auto gerido pelos próprios indígenas. Eles pretendem fazer o que o Estado não consegue realizar, que é a preservação da ARIE”.

“A arquitetura indígena pode nos ensinar sobre ‘ser’ parte da natureza. A construção e os espaços construídos não são separados das pessoas, mas são parte da construção da vida delas conectados ao meio ambiente e ao espaço natural”, complementa a professora da UnB.

“As aldeias indígenas representam parte indispensável nos movimentos sociais cujas políticas públicas habitacionais e projetos de construção das cidades necessitam, mais do que nunca, de pluralidade”, destaca Andréa dos Santos, presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA).

Andréa adiciona que “a colaboração constante com as comunidades indígenas possibilita projetos que priorizem a participação comunitária e o desenvolvimento sustentável, sendo pontos importantes para a realização de uma arquitetura que busca se aproximar das vivências da população brasileira”.

O representante do Brasil no Grupo de Trabalho de arquitetura indígena da União Internacional de Arquitetos (UIA), Igor de Vetyemy, explica que “as diversas arquiteturas indígenas que ocupavam esse território que hoje chamamos de Brasil têm importantíssimas lições sobre a melhor maneira de construir no nosso clima”. 

“Recentemente, essas lições começam a ser mais investigadas e utilizadas, como as premissas de sombrear e ventilar (essenciais para o clima quente e úmido de grande parte do país, incluindo o [meu] Rio de Janeiro), além questões de materialidade na arquitetura e de organização não hierárquica na ocupação territorial”, aponta Vetyemy.

A arquitetura convencional tem incorporado tendências que da arquitetura indígena no cotidiano das cidades, onde os elementos da natureza são como parte da vida, sem a hierarquia antropocêntrica, a natureza não é mais um recurso, nem objetificada, ela é viva e atuante no espaço, algo que Liza conclui:

“A relação dos povos indígenas com as florestas vai além da moradia, eles possuem um profundo conhecimento tradicional sobre as florestas incluindo as ervas medicinais, técnicas de caça e pesca sustentáveis, produção de alimentos, métodos de manejo florestal e práticas agrícolas adaptadas às condições locais, o que reforça o conhecimentos dos povos indígenas sobre as Soluções baseadas na Natureza, que propõem outras formas de ocupação do território desenho urbano e arquitetônico em escalas variadas incorporando a natureza como parte da resposta a grandes desafios atuais que vão desde as mudanças climáticas à desigualdade social com possibilidades de se criar infraestruturas físicas e sociais mais resilientes”.

A FNA está atenta aos processos de resgate cultural no qual os arquitetos e urbanistas estão unidos na construção coletiva pela garantia de direitos à comunidade indígena e no resguardo de seu território.

Fotos: Liza Andrade/UnB

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