Hora de transformar a maioria numérica em poder

Se a história da Arquitetura e do Urbanismo no Brasil fosse uma novela, o nome de Valeska Peres Pinto, 70, certamente estaria entre os protagonistas. A arquiteta e urbanista concluiu seu curso na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Brás Cubas, de Mogi das Cruzes (SP) em 1975. Integrante do conselho consultivo da FNA, ela é o retrato de quem batalhou para construir o movimento de luta pela classe trabalhadora no país, uma voz feminina que ganhou eco em um mundo de homens.

Nascida em Porto Alegre (RS), Valeska orgulha-se ao dizer que foi a primeira mulher a assumir a presidência de uma federação de profissionais no Brasil. E se a presença de mulheres em cargos de decisão é, até hoje, motivo de perturbação para alguns, em 1989 era muito mais. “Uma mulher, nesses espaços, não era uma coisa esperada. Mas tenho de admitir que, tanto na FNA como em outros setores da sociedade, tive a oportunidade naquele momento de ocupar este espaço porque nenhum homem mais quis. E eu o fiz”.

Militante de oposição ao regime militar, foi presa e processada no início dos anos 70 que culminou no exílio na França no final da década. De retorno ao Brasil em 1982, participou em diferentes lutas pela democratização do país, integrou a direção do Partido dos Trabalhadores (PT), no estado de São Paulo e ingressou no movimento sindical, filiando-se ao Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (Sasp). Primeira presidente mulher da FNA, permaneceu no cargo por dois mandatos – 1989 a 1995. Eleita, afirma que se manteve “tranquila e firme” para enfrentar aqueles que duvidavam da sua capacidade para assumir o cargo. “Eu era presidente, secretária, contadora. Naquela época, a gente fazia milagre”, conta com saudades do tempo em que as dificuldades do movimento sindical restringiam-se principalmente à falta de infraestrutura. Alguns anos depois, em 1999, viria a assumir a presidência do SASP. Esteve presente nas decisões mais importantes da profissão no país, incluindo a articulação que levou à criação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU). Sarcástica e dona de uma perspicácia ímpar, é exemplo de mente mutante: carrega a sabedoria do tempo sempre plugada no novo.

Para Valeska, o crescimento da presença de mulheres na nossa profissão não é suficiente para a valorização do seu papel. “Temos que nos perguntar: como transformar a maioria numérica em poder? Temos que mudar a visão que temos de nós mesmas. As mulheres continuam confinadas e mesmo conformadas ao papel de cuidadoras”, afirma. “As mulheres precisam transformar seu papel na reprodução da espécie e o seu compromisso em cuidar da sua prole, família e amigos, em valores afirmativos, ou seja, usá-los a seu favor nos tempos atuais. E isto vai ao encontro das profundas mudanças na economia e no mundo do trabalho, provocadas pelas mudanças tecnológicas. Neste contexto, muitos dos atributos masculinos, como a força física e a ação focada, estão em risco de serem substituídos por computadores e robôs. Já os atributos das mulheres, como a intuição, empatia e determinação, ainda serão muito úteis para a humanidade”.

Suas atividades sindicais iniciaram em 1983 quando se aproximou de colegas que a convidaram para participar, em 1982, em uma das três chapas que concorreram à diretoria do SASP. Naquele pleito, sua chapa perdeu. Em 1986, em nova disputa, sua chapa foi vitoriosa, passando a integrar a diretoria da entidade. “Coube a esta diretoria realinhar as suas ações com a FNA, após um processo eleitoral na Federação que dividiu os sindicatos. Estávamos sem dinheiro, quebrados, fazendo vaquinha”, lembra.  Em meio às dificuldades, a FNA e seus sindicatos filiados engajaram-se nas mobilizações que marcaram o final daquela década, como a Campanha das Diretas Já, Processo Constituinte e nas Eleições Diretas que se estenderam dos municípios, passando pelos governos estaduais e governo federal. A FNA e seus sindicatos filiados atuaram na discussão do texto da nova Constituição aprovada em 1988 e na formulação de programas para os municípios brasileiros sob o manto da luta pela Reforma Urbana. Ao final da década de 1980, muitos dirigentes sindicais arquitetos e urbanistas foram chamados a postos nos governos, principalmente municipais, gerando vazios nas entidades. Foi no contexto de reorganização dos quadros do movimento sindical que ela foi eleita para a presidência da FNA onde ficou até 1995.

A participação de Valeska no movimento sindical foi concomitante à sua atuação profissional. Em 1982, após voltar do exílio na França, onde se especializou em Geografia Urbana, decidiu direcionar sua atuação para a área do Urbanismo. Seu primeiro emprego nesta área foi na Prefeitura de Diadema, em 1983, onde atuou na diretoria de planejamento encarregado, entre outras atividades, no planejamento urbano e política de habitação. Em 1984, se deslocou para a Prefeitura de Campos de Jordão, que necessitava ajustar seu ordenamento urbanístico à legislação ambiental estadual que afetou diretamente o município.

Em 1985, ingressou na Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô), quando se aproximou da área onde iria se dedicar nos anos seguintes. “Eu trabalhei no Departamento de Planejamento, onde estavam sendo feitos a análise das informações e dos cenários usados para a expansão do sistema. Nele, se fazia as projeções de demandas para as linhas futuras, assim como as Pesquisas de Origem e Destino, realizadas até hoje. Na época, o tema mais desafiador era a integração das linhas ônibus com a primeira linha do Metrô de São Paulo. A construção de um sistema integrado não só garantia passageiros para o Metrô, como possibilitou impregnar o setor de transporte público de práticas modernas e inovadoras”, pontua. E foi o constante trabalho no sentido de fomentar o uso do metrô que fez com que o sistema paulistano chegasse à marca de segundo maior metrô da América Latina.

O setor mudou muito desde aquela época. A implantação do bilhete único no transporte por ônibus na capital, em 2004, e sua expansão na sequência para o Metrô e CPTM (sistema ferroviário), é um exemplo disto. “As pessoas passaram a ter mais controle das suas viagens e facilitou para muitas, que viviam em regiões periféricas, o acesso aos empregos que, em grande parte, estavam concentrados nas regiões centrais”, exemplifica. Desde 2000, Valeska está aposentada, se é que essa palavra se aplica a sua vida cheia de atividades e a sua mente sempre fervilhante de ideias. Determinada, nunca se ausentou dos debates sobre arquitetura e urbanismo e dos desafios da profissão.

Ela acredita que na mobilidade urbana devem ser implementadas ações destinadas à melhoria das condições de vida das mulheres dentro e fora dos transportes públicos. “Na medida em que as mulheres passaram a ingressar no mercado de trabalho, assistimos que a violência contra elas, antes confinados nos espaços domésticos, também acontecerem no espaço público. É necessário olhar para a infraestrutura da mobilidade, como calçadas, veículos, terminais e paradas de ônibus, muitas delas precárias e sem iluminação à noite”, lista. Para Valeska, a violência contra as mulheres é um dos vetores que conduziu o roteiro de lutas de sua vida: seja na militância política, sindical, seja na sua atuação profissional.

O que elas querem das cidades:
– Delegacias com equipes preparadas para receber mulheres agredidas;
– Implantação de creches próximas a moradia ou trabalho;
– Compartilhamento da licença maternidade entre pais e mães;
– Iluminação pública nas calçadas, terminais e pontos de metrô e ônibus;
– Políticas firmes contra o assédio sexual no transporte público.

Rolar para cima