Direito à cidade e à saúde

Por Eleonora Lisboa Mascia, presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA).

De acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e estimativas atualizadas em 2019, o Brasil tinha mais de 210 milhões de habitantes, 84 de cada 100 habitantes morando em área urbana, percentual que tende a ser ainda maior quando o novo censo for atualizado. Por isso, discutir a qualidade de vida e a saúde nas cidades é tão importante. As cidades brasileiras têm características diferentes, o que é um desafio colocado quando se trata de enfrentar uma pandemia global como a do novo coronavírus. No entanto, apesar das diferenças, percebemos processos históricos comuns a praticamente todas as cidades: desigualdade e segregação socioespacial, com áreas bem servidas de equipamentos e infraestrutura urbana, espaços públicos, arborização, por um lado, e áreas com muitas carências, por outro.

A dificuldade de acesso à terra e à moradia pelas populações mais pobres, levou a um déficit habitacional expressivo, à formação de assentamentos irregulares e à ocupação precária de espaços urbanos. Nossa realidade social é resultado do histórico de exclusão sócio-territorial, especulação da terra urbana e preconceito de classe em um país que amplia cada vez mais a distância entre os poucos que têm muito e os muitos que nada têm.

Então temos a Constituição Cidadã de 1988, que institucionaliza o Sistema Único de Saúde (SUS), e treze anos depois uma lei avançada como o Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) com instrumentos que possibilitam a democratização do acesso à terra urbanizada, mas que praticamente não foram aplicados na larga escala necessária para reverter o quadro de desigualdade. Em uma crise sanitária sem precedentes, todos lembram que ainda temos o SUS, no entanto, o modelo de cidade para poucos perpetua a desigualdade histórica e o crescimento concentrado nas mãos de poucos.

Com isso prevalece a privatização das cidades pelo mercado, intensificando as desigualdades socioespaciais. Isso ocorre porque as cidades são espaços atravessados por uma diversidade de interesses que intervém na produção das cidades. Neste sentido, a configuração das cidades também expressa relações de poder e de dominação. Para alguns, as cidades são como mercadoria com oportunidades de negócios e de lucros. Para outros, as cidades são lugares para se viver, trabalhar e encontrar as pessoas. Estas duas visões, da cidade-mercado e da cidade-direitos, inclusive aos direitos de saúde e bem-estar, estão presentes nos conflitos vivenciados no nosso dia-a-dia.

Discutir a função social implica no desafio de submeter o direito de propriedade individual no espaço urbano ao interesse social e aos benefícios possíveis para o conjunto da população. Inverter a lógica individualista, pois o que é bom para um não pode prejudicar a todos. Desta forma, a Constituição de 1988 prevê em seu artigo 182 a função social da cidade atrelando a sua compreensão jurídica a algumas ideias fundamentais:

● a cidade é um bem comum que pertence ao conjunto de sua população;
● a cidade é produto do esforço de todos e não só de alguns grupos;
● a cidade deve oferecer qualidade de vida de forma equilibrada a todos;
● a cidade deve oferecer oportunidade aos mais pobres, em variadas dimensões: saúde, educação, transporte, moradia, infraestrutura, cultura, lazer, entre outros.

Pode-se dizer que a cidade cumpre sua função social quando o acesso a bens, serviços, equipamentos, espaços públicos, sistemas de transporte e mobilidade, saneamento básico e habitação se dá de forma relativamente equânime pelo conjunto da população de forma justa e democrática. Neste sentido, pode-se dizer que a função social da cidade envolve o direito a ter uma vida individual e coletiva digna e prazerosa, e a participar das decisões relativas à cidade, inclusive por meio da criação de novos direitos. A cidade, por ser um bem comum, deve ser orientada para cumprir essa função social.

A Constituição Federal ao mesmo tempo em que garante o direito de propriedade, em seu artigo 5º, diz que ela deve atender a sua função social (Art.5º, Caput, CF–“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade….”). Ou seja, o direito à propriedade urbana deve estar submetido à função social da propriedade. Contudo, apesar de constar na Constituição, esse conceito está longe de ser concretizado, enfrentando resistências, inclusive, nos poderes judiciário, legislativo e executivo para sua efetivação. Os responsáveis por fazer cumprir a lei, em muitas situações, estão do lado oposto ao do interesse comum da população. A função social é uma medida de equilíbrio ao direito de propriedade, uma espécie de balança usada para impedir que o exercício do direito de propriedade em caráter privado prejudique um interesse maior da coletividade, de ter acesso ao bem comum da cidade.

Entre outras propostas para implementar moradias bem localizadas, especialmente para a população excluída social e territorialmente, destacamos a importância dos instrumentos do Estatuto das Cidades, como a demarcação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e o usucapião coletivo. Trabalhar os instrumentos de democratização do acesso à terra urbanizada e bem localizada como as bases para uma política urbana inclusiva e de redistribuição de benefícios melhora o aproveitamento de áreas já consolidadas.

Outro meio para se praticar justiça fundiária nas cidades é a recuperação de imóveis vazios nos centros urbanos, especialmente para a função habitacional, mas também para áreas verdes, de cultura e lazer, assim como serviços, que podem dinamizar a vida urbana a partir do planejamento por parte do poder público e participação da população no controle social das definições e políticas de incentivo ao desenvolvimento.
Para que as políticas e instrumentos urbanos sejam aplicados com transparência, é fundamental a eleição de um conselho municipal das cidades com ampla representação. Em 2016 foi extinto o Conselho das Cidades no âmbito nacional que durante 13 anos foi um catalisador importante das demandas tratadas nas conferências temáticas, que tratavam das questões urbanas, como planejamento, habitação, saneamento, mobilidade e transporte. A transdisciplinaridade no debate urbano pôde trazer propostas para políticas públicas de alcance a toda população, como é o caso da saúde e segurança sanitária.

Em tempos de caixa dos municípios com enormes dificuldades, democratizar o acesso à terra urbana pode criar meios para captar para a gestão pública a mais-valia fundiária urbana e ampliar os benefícios para toda a população com justiça social e sem os vícios do patrimonialismo. Trazer o direito à Assistência Técnica para todos que não possuem as condições mínimas de moradia também é política de saúde. Sobre este tema, foi instituída a Lei 11.888/2008, Lei da Assistência Técnica, que garante os meios para que seja assegurado o acesso ao projeto e acompanhamento da obra de Habitação de Interesse Social à população de baixa renda.

Vamos continuar lutando pela conscientização política, pela renovação dos quadros de representação, associado à promoção da justiça social e fundiária, bem como políticas públicas universais, como a de saúde. Só assim poderemos avançar em um projeto de desenvolvimento e distribuição justa do que as cidades podem vir a ser quando passarmos pela crise aguda da pandemia do coronavírus.

*Artigo retirado do livro “Coronavírus e as cidades no Brasil: reflexões durante a pandemia”.

Foto: fredcardoso/ Istock

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