Arquitetura é agente de inclusão da comunidade LGBTQIA+

A arquitetura e o urbanismo, aliados à assistência social, são ferramentas essenciais na luta pela acolhida e segurança da comunidade LGBTQIA+. Motivo de morte de uma pessoa a cada 34 horas no Brasil de acordo com dados do Grupo Gay da Bahia (GGC), o preconceito de gênero precisa ganhar a pauta das cidades brasileiras e já está entre as bandeiras de militância da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA). O vice-presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Maurilio Chiaretti, reforça que projetos para espaços públicos de acolhimento podem, inclusive, aliviar a carga dos programas sociais que atingem os centros urbanos. “Quando você tem construções bem estruturadas, que possam oferecer diferentes serviços e tipos de acolhidas, você alivia a carga do Sistema Único de Assistência Social (Suas), por exemplo”, explica, lembrando que os Centros de Acolhimento servem de abrigo provisório e buscam reintegrar parte da população mais marginalizada. “Ter acesso à arquitetura inclusiva é forma de viver dignamente. Ter moradia, saúde, educação e cultura são direitos de todos os cidadãos”, complementa.

Entre quem mais necessita desses espaços está a população transgênera em situação de vulnerabilidade. De acordo com o Diagnóstico da Juventude LGBT, pesquisa produzida em 2018 pelo Governo Federal em parceria com  Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os moradores em situação de rua de São Paulo pertencentes à comunidade LGBTQIA+ têm entre 15 e 29 anos, movimento explicado pelo alto índice de rejeição por parte das famílias. Muitas transexuais e travestis são expulsas de casa, negadas no mercado de trabalho e na sociedade, ficando sujeitas à marginalidade, à prostituição e aos mais diversos tipos de violência.O estudo ainda indicou que entre 4,5% e 10% deles fazem uso de centros de acolhimento tendo em vista a baixa oferta de vagas na capital paulista.

Para a arquiteta e urbanista Débora Lupatini Garbin, autora da pesquisa Critérios arquitetônicos para edificações com funções de acolhimento: uma luta contra a (in)visibilidade e vulnerabilidade política e social da população LGBTQI+, é preciso “ter um conhecimento histórico sobre para quem você vai trabalhar”. Dessa forma, é possível potencializar espaços de acolhida, projetando lugares que tragam hospitalidade para quem vai usufruir. No caso da comunidade LGBTQIA+, isso envolve pensar em locais de assistência jurídica, psicológica e de convivência artística e cultural. Apoio essencial no empoderamento desses cidadãos como agentes das cidades. “Juntando todos esses itens você vai amenizar um pouco do que eles passam na sociedade”, complementa.

O acolhimento na prática
A Casa Florescer, em São Paulo (SP), é um exemplo de como uma arquitetura bem pensada e aplicada pode fazer a diferença na vida das pessoas na busca da inclusão. Criada em 2016 como o primeiro centro exclusivo para LGBTQIA+s no Brasil, atualmente acolhe por vez 30 travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade. O espaço conta com sala para atendimento psicológico, para atendimento social, quadra poliesportiva e local para desenvolvimento de atividades artísticas e culturais, além de uma equipe multidisciplinar composta por 17 colaboradores, entre psicólogos, assistentes sociais, orientadores e cozinheiros. O projeto recebe financiamento da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) de São Paulo (SP), além do apoio de outros parceiros, como a Associação Brasileira dos Profissionais de Saúde, Educação e Terapia Sexual (Abrasex).

Alberto Silva, administrador e gestor da casa, acredita em uma articulação em rede que envolve saúde, educação, cultura, esportes, assistência social, emprego e moradia. “O trabalho vem sendo construído no sentido de informar estas cidadãs dos seus direitos e garanti-los em diálogo com os serviços e os equipamentos para as políticas LGBTQIA+”, complementa. Desde que a instituição abriu as portas, já foram 1.112 pessoas atendidas. Segundo dados do próprio centro, do total de acolhidos, 100% tiveram adesão à rede de saúde, 80%  conseguiram documentação, 70% retornaram aos estudos e 45% conseguiram a retificação de seus nomes. Ainda, 302 pessoas conseguiram recolocação no mercado e autonomia. 

Casa Florescer. Foto: Alberto Silva

As ações bem sucedidas também são vistas no norte do país. A Casa Miga, em Manaus (AM), é a primeira da região a atender à comunidade LGBTQIA+ e é gerida pela professora de inglês Karen de Arruda. O local, desde sua criação em 2018, já abrigou mais de 300 pessoas. Por conta das peculiaridades territoriais, o espaço também recebe refugiados, vindos principalmente da Venezuela, Colômbia e Cuba. Entre eles, 95% relataram ter sofrido LGBTfobia durante o deslocamento forçado e 70% passaram por violência intrafamiliar. Entre os acolhidos locais, 80% foram expulsos de casa ainda na adolescência, 100% sofreram violência e 60% encontraram na prostituição uma forma de subsistência. 

Karen aponta como um fator limitante, na região Norte, a questão da falta de apoio financeiro. O amparo do poder público e de instituições privadas, como acontece em São Paulo, está ausente na Casa Miga, o que leva a gestora a lamentar a falta de planejamento na arquitetura do local. “A nossa casa é alugada. Já tivemos duas que eram menores. Estamos na terceira e o que conseguimos planejar um pouco foi separar a moradia da parte administrativa, para dar mais privacidade à comunidade. A gente vai fazendo o que pode de acordo com o que tem”. A gestora ainda lamenta que, por falta de estrutura, incentivos e acesso aos profissionais de arquitetura e urbanismo, a instituição não consegue atender a toda a demanda que recebe.

Karen junto com moradoras da Casa Miga segurando uma bandeira
Foto: Karen de Arruda

O vice-presidente da FNA ainda reforça que em um país com tanta desigualdade, preconceitos e com o tripé da seguridade social sobrecarregado, é fundamental pensar em soluções criativas e arquitetura inclusiva para esses problemas. “A Casa Miga e a Casa Florescer, nas suas próprias particularidades regionais e financeiras, são instituições que cumprem esse papel. E, com o apoio da arquitetura e do poder público, é possível criar ainda mais Centros de Acolhimento e aprimorar os já existentes”.

Foto Capa: Christian Gutiérrez/Pexels

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