8M: As cidades são feitas para e por mulheres?

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), de 2021, as mulheres representam 51,1% da população do Brasil. Apesar de configurarem a maior fatia entre os brasileiros, ainda são uma classe minoritária no que diz respeito à segurança e acesso ao direito à cidade. Mas o que exatamente isso significa? Quem nos ajuda a contar essa história é Maria. Um perfil fictício criado pela Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), de uma mãe solo, de 35 anos, de duas crianças e moradora de bairro periférico em um grande centro urbano. Maria é auxiliar de serviços gerais em uma empresa no centro da cidade. E é através do dia a dia dela que vamos entender como as cidades são excludentes com as mulheres.

Atualmente, apenas 21,5% do legislativo brasileiro (TSE Mulheres), na perspectiva federal, estadual e municipal, é feminina. Como pensar a mobilidade e os espaços urbanos eficientes e seguros, com acesso à ônibus, moradia, creche, escolas e espaços de lazer, sendo que boa parte das leis no país são pensadas, desenvolvidas e aprovadas por homens? A cidade e as políticas públicas são diretamente responsáveis pela diminuição da desigualdade de gênero e é preciso pensar os municípios como uma rede de apoio às mulheres. Seja na localização central dos conjuntos habitacionais e na segurança e rapidez do trajeto até o trabalho, seja no apoio das escolas e creches para cuidar dos filhos enquanto elas buscam sustento familiar na rua.

Maria acorda todos os dias às 4h30min. A distância de casa até o trabalho gira em torno de 2 horas, com um pedaço do percurso a pé e outro de ônibus. No bairro onde mora, as vagas para as creches e escolas esgotaram e ela só conseguiu inscrever os filhos em uma região vizinha. Hoje, ela é moradora de um programa de habitação social, onde a prefeitura criou um bairro residencial sem incluir os serviços de apoio e prestação de serviço suficientes à população. Essa situação, e a falta de acesso à rede de educação pública, criou um desvio da sua rota diária e acrescentou mais 1 hora de trajeto. No serviço, ela só se libera às 18h, enquanto as crianças saem da escola às 12h30min. Como ela poderia buscar os filhos no colégio? Uma pesquisa da Catho, de 2018, revela que 30% das mulheres abandonam o mercado de trabalho para cuidar dos filhos. Um estudo da Universidade de Rochester, baseado em dados do município de São Paulo, aponta que a ampliação de creches públicas aumenta em 44 pontos percentuais a probabilidade de emprego para as mães brasileiras.

De acordo com os últimos dados do Ministério das Cidades, de 2015, as mulheres representavam 71% dos beneficiários dos programas de habitação social. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou, em 2018, que 45% das mulheres são chefes de família e a única renda financeira da casa. Maria faz parte dessas estatísticas. E é obrigação do Estado, muito mais do que oferecer a moradia, pensar os bairros, as escolas e os espaços de lazer para prover à essa mãe solo toda a assistência necessária para seguir no mercado de trabalho. A solução que Maria encontrou para o retorno dos filhos após às aulas foi ensinar Rafael, de 10 anos, e Bruno, de 8 anos, a usarem as linhas de ônibus da cidade, afinal, a prefeitura não oferece serviços de transporte escolar. Logo que os meninos chegarem em casa, Carolina, a vizinha, é quem vai ficar de olho nas crianças até que Maria possa voltar para o seu bairro, tudo isso, lá pelas 21h. 

Além de todas as estatísticas das quais nossa personagem já faz parte, e de toda a responsabilidade pública (que não acontece) em auxiliá-la, Maria ainda vive uma realidade que diz respeito somente a sua própria segurança: o assédio nos espaços públicos. A Pesquisa Origem e Destino, realizada pelo Metrô de São Paulo em 2017, revela que 74% dos usuários de transporte coletivo são mulheres. O Instituto Locomotiva e a Agência Patrícia Galvão divulgaram, em 2021, que 54% delas já sofreram algum tipo de assédio no transporte público. Esse número chega a 86% (YouGov, 2016) quando o assédio é em espaços urbanos, como parques, banheiros e nas ruas da cidade. E para sermos honestos, existe um caminho mais fácil para Maria chegar em casa, que reduziria quase 40 minutos do seu trajeto diário. Mas ela evita, porque isso implicaria em andar em ruas sem iluminação pública, com nenhum movimento e sem segurança. Essa é a realidade de 69% (YouGov, 2016) das mulheres brasileiras, que têm receio de circular pela cidade à noite. Inclusive, com mais medo de assédio do que de assalto.

Os planos diretores e a mobilidade urbana precisam ser analisados na perspectiva de gênero, levando em conta o dia a dia de uma personagem como Maria, que representa a realidade de incontáveis mulheres no país. Não é possível falar em moradia para famílias de baixa renda sem considerar que as zonas empregatícias estão nas regiões centrais das cidades, por isso, criar um conglomerado habitacional em bairros afastados não resolve o problema. Ainda mais quando a expansão da cidade para novos bairros vem sem o apoio público de saúde, educação e trabalho para a população que será deslocada até essas regiões. O transporte coletivo, que precisa ser fracionado do centro até os bairros periféricos, também entra nessa equação de problemas quando obriga a espera das mulheres em locais pouco iluminados e movimentados. 

Em 2021, 51% das cadeiras do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU Brasil) foram ocupadas por mulheres, pela primeira vez desde a criação da entidade, a representação feminina foi maior que a masculina. Os caminhos vêm se abrindo, mas ainda são lentos. Hoje, a Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/DN), a Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo (FeNEA), Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (Abea), Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (Abea), Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (AsBEA) e o CAU Brasil tem como presidente, ou vice-presidente, mulheres. Instituições que têm um papel fundamental no pensar das cidades e em promover as discussões de gênero dentro da categoria. Em contrapartida, das 513 cadeiras da Câmara dos Deputados em Brasília, somente quatro foram ocupadas por arquitetos e urbanistas, sendo apenas uma delas por uma mulher. 

Apesar das evoluções, falta representatividade feminina dentro dos espaços de poder e dos órgãos que podem mudar a realidade de tantas mulheres que chefiam suas casas, suas famílias e que geram renda para o país. É direito de toda a população brasileira ter acesso à segurança, à moradia e, principalmente, à cidade. É dever dos governos municipais, estaduais e federais oferecer as estruturas para que se garanta essa vivência da cidadania. Nesse dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, ainda há muito pelo que se lutar. É preciso eleger mulheres, ouvir mulheres, desenvolver cidades para mulheres e por mulheres. Seguimos em luta pelas 108 milhões de Marias.

Foto: Carolina Jardine

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