Uma perspectiva pluralista, feminina e não eurocêntrica da arquitetura

Autor: Patrícia Feiten

Formar arquitetos e urbanistas com sensibilidade artística e uma visão diferenciada do território e do espaço urbano, conscientes da diversidade geográfica, climática, social e cultural do Brasil e capazes de construir na diferença – e construir criativamente com o outro, não apenas para o outro. Esse é o desafio a que se propõe o curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Santa Úrsula (USU), no Rio de Janeiro (RJ).

Considerado um dos melhores do país nos anos 80 e 90, o curso foi afetado pela crise enfrentada pela universidade entre o final da década de 90 e 2012. Após a recuperação da instituição, passou por uma reformulação em 2015, valorizando, na nova grade curricular, o diálogo com outros campos de conhecimento, como as artes plásticas, a filosofia e a psicologia, e explorando inclusive técnicas de expressão corporal como forma de ampliar a percepção dos estudantes. “Partimos da necessidade de que precisamos construir de diferentes maneiras porque somos um país muito diverso”, diz a professora e coordenadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USU, Iazana Guizzo.

Segundo a docente, esse novo paradigma baseia-se em uma perspectiva feminina da arquitetura, entendida como “um arranjo não eurocêntrico, masculino e branco” que busca referências, por exemplo, nas culturas indígena e africana para desenvolver as habilidades do arquiteto. “Defendemos uma potencialidade do corpo, de um arquiteto que vai ter uma sensibilidade muito forte em relação ao território, um arquiteto que pensa a arquitetura como uma produção de mundo e de modos de estar no mundo e que pode oferecer à cidade rupturas, novas questões, produzir demandas a partir desse território e fugir aos modelos, a partir de uma sensibilidade não tradicional”, afirma.

Natural de Farroupilha (RS), formada em Arquitetura e Urbanismo pela UniRitter (Porto Alegre, RS, 2004), mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (2008) e doutora em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2014), Iazana também cursou doutorado-sanduíche no Institute d’Urbanisme de Paris (2012-2013). Formada no curso técnico de bailarino contemporâneo na Escola e Faculdade Angel Vianna-Rio (2011), atua ainda no escritório Terceira Margem, coletivo transdisciplinar que elabora projetos colaborativos de arquitetura e urbanismo, promove oficinas e desenvolve estudos sobre as relações entre os modos de ser e viver e os espaços construídos. Nesta entrevista, a docente fala sobre a nova abordagem do curso de Arquitetura e Urbanismo da USU. Confira:

FNA: O que motivou as mudanças introduzidas no curso?
Iazana Guizzo: O que motiva a concepção deste curso é o nosso território brasileiro. Diante de um território tão plural em vários sentidos, temos uma arquitetura muito homogênea. Por que construímos de uma forma muito parecida no interior do RS, no interior do Sertão e no centro de São Paulo? Da favela à mansão, nesses diferentes mundos que são essas regiões brasileiras, estamos construindo com laje e tijolo de seis furos. Partimos da necessidade de que precisamos construir de diferentes maneiras porque somos um país muito diverso. E, para construir na diversidade, é preciso que o aluno entenda diversas maneiras de construir. As nossas universidades acabam formando muito num sentido só, passando pouco pelas tectônicas, pelo domínio da obra. Mas, ao contrário de um primeiro pensamento, não é curso muito técnico. De fato, precisamos saber construir com metal, com concreto, com terra crua. E precisamos aprender a construir com blocos. Mas, apesar disso, o curso é muito artístico, porque construir na diferença também pressupõe que você se contagie pelo território, que você não faça, mesmo com diferentes materiais, modelos hegemônicos, que provêm de uma cosmovisão de mundo que é sobretudo eurocêntrica, ou essa visão cristalizada de maneira hegemônica na América, que é uma visão norte-americana. O que queremos é que esse arquiteto tenha ferramentas, saiba percorrer esses modos de construir diferentes, mas que também saiba se encontrar com essa alteridade radical que é o Brasil. Ele [o curso] se baseia num tripé muito claro. Saber construir de várias maneiras para que eu não construa sempre do mesmo jeito em qualquer situação, mas também uma produção de uma habilidade e de ferramentas de um arquiteto contemporâneo que é capaz de lidar com o outro, ouvir e se contagiar pelo território. E a ideia de um arquiteto que pensa e constrói demandas junto [com o outro], que é o terceiro pilar do curso. Então, o que nos mobiliza é um território diverso que é o Brasil e a possibilidade de fazer uma arquitetura de baixo para cima, uma arquitetura que emerja das forças do território – e não que um modelo, na maior parte das vezes, de uma cultura central, eurocêntrica, seja imposto de cima para baixo no território brasileiro. Temos uma aposta ética e política muito evidente, que é de fortalecimento dos nossos modos de existir e da criação desses modos. Queremos produzir singularidade, e não modelo. Estamos contra os modelos nesse curso.

FNA: Ao formatar o novo currículo, vocês buscaram referência em outras escolas ou universidades internacionais, ou alguma outra referência?
IG: Temos muitas referências. Pesquisamos muitos currículos bem clássicos: AA [Architectural Association School of Architecture, de Londres], Escola de Veneza, Grenoble, na França, algumas universidades americanas, e pesquisamos também as latino-americanas, a escola da Argentina e do Uruguai [Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo da Universidade de Buenos Aires e Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo da Universidad de la República, em Montevidéu], que são muito fortes principalmente na ideia dos grandes ateliês. No Brasil, a Escola da Cidade [de São Paulo], a Escola Federal de Pernambuco. Acabamos descobrindo que há escolas novas interessantes, a Unila [Universidade Federal da Integração Latino-Americana]. E a Escola de São Paulo, algo que vimos depois do nosso currículo, mas com que estamos em diálogo também. E também vamos nos inspirar em outros métodos de ensino, que provêm de outros campos de conhecimento. A ideia da filosofia é muito forte no curso. Eu não penso sem problematizar as coisas, sem produzir pensamento. Temos metodologias da dança, do teatro, temos psicólogos, bailarinos, artistas plásticos na equipe. Temos um corpo docente e uma sequência de disciplinas que fazem com que outros modos de pensar e ensinar contagiem o curso, uma perspectiva também de diálogo a partir do território dos alunos com os alunos (que, no fundo, é também uma visão freireana, que usamos em alguns momentos) e a ideia dos ateliês, que são clássicos na arquitetura, radicalizando isso numa integração horizontal das disciplinas e também vertical.

FNA: Qual é o perfil de arquiteto e urbanista que o novo curso quer formar, quais sãos as novas habilidades que ele precisa desenvolver?
IG: Esse profissional precisa desenvolver um certo estado de presença corporal. Isso não significa que ele precisa estar lado a lado com o outro: significa que ele se contagia pela existência desse outro, uma coisa que a antropologia entende muito bem quando pensa a etnografia, que a psicologia entende muito bem quando pensa o que é a escuta, que a filosofia entende muito bem quando pensa o que é a criação artística, que a arte entende muito bem quando produz uma arte que emerge do território, tem um certo estado de atenção ao território, que não é um estado absolutamente métrico, que resolve problemas funcionais, burocráticos, mas um estado poético, de encontro com esse território. Então, essas outras habilidades que estamos falando, acompanhando essa ideia contemporânea de que há uma mudança de paradigma nessa profissão da arquitetura, onde eu não mais desenho para o outro, mas com o outro. Só que esse desenhar com o outro não é tão simples assim, eu preciso desenvolver um corpo capaz de se deslocar de um lugar conhecido de si. Então, vamos desenvolver habilidades de percepção. Aqui na escola, temos uma sala que se chama ateliê corporal, com piso linóleo e almofadas, onde as pessoas deitam no chão, fecham os olhos, conseguem se reconectar com o que está acontecendo com o corpo delas, para poderem perceber o espaço e o mundo a partir sempre de uma relação de composição com o seu próprio corpo. Então, há uma série de exercícios, por exemplo, desenvolvidos na dança, no teatro, nas artes plásticas, que vão desenvolver um corpo sensorial e que estamos desenvolvendo aqui na escolar também, para poder criar uma habilidade disponível a um real encontro desse arquiteto com o território. Essa habilidade que é tão clara nas matrizes indígenas e africanas e tão difícil de compreender para uma visão eurocêntrica e materialista.

FNA: De que a forma a abordagem filosófica se reflete no currículo, nas disciplinas práticas de projeto?
IG: Não temos mais programas nos ateliês de projeto (comercial, hospital, multifamiliar), esse recorte tradicional da arquitetura, de pensar os espaços por programas. Acompanhamos certas ideias que estão acontecendo em outros lugares, por exemplo, uma ideia de uma estrutura aberta, que alguns arquitetos contemporâneos importantes defendem, como Rem Koolhaas. Por exemplo, a AA em Londres vai pensar alguns ateliês a partir de problemas, questões de determinados recortes da cidade. Essas ideias nos inspiraram e [levam] a uma outra coisa que produzimos aqui na escola e estamos chamando de produção de demanda, que é construir essa demanda a partir dessa habilidade corporal íntima com o território que estamos criando. Então, os ateliês do curso não têm programa: têm uma agenda e um território no início e depois, no meio do curso, uma agenda, um território e uma materialidade dominante. Por exemplo: no Ateliê 1, a agenda é ambiental; no Ateliê 2, a agenda é social; no Ateliê 3, a agenda é o habitar, o nosso modo de habitar o planeta, nesse sentido bem amplo. Depois, no segundo ciclo [os ateliês]: Tradição/Terra, Modulação/Bloco, Efêmero/Madeira e Universal/Metal e Local/Concreto). Temos uma materialidade, uma agenda, na qual pensamos filosoficamente o que é a tradição, qual é a questão da tradição nas artes, como alguns arquitetos se posicionam em relação a isso, de a tradição não ser uma cópia do passado, mas uma continuidade daquela força expressiva, como [o arquiteto] Álvaro Siza entende a tradição. Aí você desdobra nas artes, na arquitetura e na filosofia o que é essa história da tradição e o seu contrapelo, como é que vou desenhar pensando essa questão. Achamos que um dos maiores inimigos nossos é o funcionalismo. E vamos, então, pensar essas questões nesse território a partir de um recorte da materialidade, e aí os alunos inventam o que vai ser. Acreditamos que o arquiteto precisa ser ativo. O cliente, na maior parte das vezes, tem uma intuição, mas não sabe exatamente o que quer. Como você ajuda ele a construir? [Isso envolve] desde uma reforma de interiores até você pensar o que essa cidade está precisando – e que não é uma demanda que vai chegar na porta do seu escritório, mas que você vai criar. Então, no curso todo, em nenhum dos 10 ateliês os alunos chegam recebendo uma receita para fazer. O que normalmente acontece só em TFG [Trabalho Final de Graduação] nas escolas, acontece no nosso curso em todos os períodos – e com complexidades e problemas distintos.

FNA: O que mais você destacaria como um diferencial do curso?
IG: Eu destacaria que esse novo arranjo que estamos propondo pode ser defendido como um arranjo feminino da arquitetura, ou como um arranjo não eurocêntrico, masculino e branco. Defendemos uma potencialidade do corpo, de um arquiteto que vai ter uma sensibilidade muito forte em relação ao território, um arquiteto que pensa a arquitetura como uma produção de mundo e de modos de estar no mundo e que pode oferecer à cidade rupturas e novas questões, produzir demandas a partir desse território e fugir aos modelos, a partir de uma sensibilidade não tradicional. O Brasil não é só europeu e não é só masculino. Quando falo em masculino, é esse valor muito material do mundo, muito concreto, onde os assuntos mais espirituais (num sentido não religioso, mas de cultivo de um estado de presença espiritual, para poder estar com o outro) são considerados menos importantes. Isso que é tão forte na cultura indígena, na cultura africana e numa certa tradição feminina, que historicamente foram subjugadas e substituídas por uma lógica muito mais tecnológica. O que estamos produzindo na Santa Úrsula é uma visão que valoriza e procura produzir esse outro modo de pensar o espaço que considera que no espaço não há só espaço para o homem, por exemplo, mas que um território é cheio de seres vivos. Então, estamos defendendo que cultivar esse tipo de pensamento problemático é um modo de pensar que pode ser entendido como feminino, no sentido da produção de uma cosmovisão não hegemônica. Tem um texto do [antropólogo Eduardo] Viveiros de Castro [que marca] a diferença entre entender a Terra, como uma entidade, um espírito, uma mãe (para os ianomâmis da Amazônia) e um lugar onde extraio materiais e deposito lixo tóxico. É a diferença nesta frase do [Davi] Kopenawa, que é um xamã ianomâmi, a diferença entre a cosmovisão branca europeia e a cosmovisão ianomâmi: eles não entendem a Terra como um lugar onde saímos destruindo e construindo (e a arquitetura faz parte disso); eles entendem a Terra como um ser que respira, que tem vida, e é isso que estamos chamando de feminino, essa compreensão, no seu próprio corpo, de que somos conectados com outros seres, com a Terra, que respira e tem vida. E é esse paradigma que o curso quer empreender. Achamos que o território brasileiro tem a potencialidade de emergir porque é constituído dessas outras culturas, que inclusive estavam aqui antes da eurocêntrica.

Foto: Lucas Lack

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