OPINIÃO FNA: A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, a recuperação das cidades do Rio Grande do Sul e as instituições dos arquitetos e urbanistas e da sociedade civil

Por Kelson Vieira Senra – Membro do Conselho Consultivo FNA

O desastre das enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul demonstraram, de maneira mais impactante possível, que os eventos extremos causados pelas mudanças climáticas, associados à fenômenos naturais como o El Niño, à degradação ambiental causada pelo uso abusivo de áreas rurais, e às ocupações de sítios urbanos inadequados para assentamentos humanos, são uma preocupação crescente e, muito provavelmente, irão ocorrer em várias outros momentos e em outras regiões. Resta saber como a sociedade e órgãos públicos estão se preparando para enfrentar estes acidentes, cada vez mais graves e devastadores.

A ação do setor público do Brasil para enfrentamento e superação de desastres como o ocorrido nas cidades gaúchas passa pela reconhecimento e adesão à Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei 12.608/2012), que instituiu um conjunto de medidas de prevenção, mitigação, preparação, resposta, proteção e recuperação, que deverão ocorrer de forma articulada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. No seu detalhamento, a legislação da Defesa Civil abrange também políticas públicas relativas ao desenvolvimento urbano, à habitação e ao meio ambiente, e acrescenta novas responsabilidades para o planejamento das cidades. 

Com base na legislação, as atividades de alerta, preparação, prevenção e resposta aos desastres são comandadas pela estrutura de Defesa Civil, instituída nos estados e na grande maioria dos municípios, coordenada pelo Centro Nacional de Gerenciamento de Risco e Desastre (CENAD), com participação do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres (CEMADEN) e  Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) no monitoramento e alerta de riscos. Em geral, a resposta a acidentes de grande impacto, como o do Rio Grande do Sul, conta com o suporte de Planos de Contingência dos três entes federados, e uma preparação que tem mobilizado diversos os órgãos públicos e incorporado instituições privadas, a solidariedade social. No entanto, são várias as críticas que apontam a necessidade de um grande aperfeiçoamento dessas atividades, considerando a enorme devastação causada pelos desastres recentes, exigindo a implantação de metodologias condizentes, com uma preparação e ações preventivas para os eventos muito mais eficientes. 

As atividades de prevenção, como estabelecido na Lei da Defesa Civil, abrangem também medidas de ordenamento territorial e de investimentos para reduzir a vulnerabilidade dos ecossistemas e das populações, a fim de evitar a ocorrência ou minimizar a intensidade de desastres. As ações de recuperação, em seu turno, tratam de reconstruir as condições de vida da comunidade atingida, incluindo a reconstrução de infraestrutura pública e unidades habitacionais. Ou seja, as atividades de prevenção a médio prazo e de reconstrução das cidades atingidas são comandadas pelo planejamento urbano e pelos investimentos em infraestrutura, desenvolvimento urbano e habitação.

O planejamento para prevenção de desastres nas cidades está muito aquém do necessário. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), cerca de 1.580 dos seus filiados eram considerados prioridade em ações de Defesa Civil em 2023 e integravam o cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, previsto na legislação (Jornal Nacional, 08/04/23). Segundo noticiado na imprensa, somente cinco municípios gaúchos consta desta lista, e não necessariamente os que mais sofreram com as cheias (25/05/2024). O que enseja uma revisão dos critérios do cadastro nacional.

Ainda de acordo com a CNM, no mesmo ano de 2023, apenas 40 cidades preencheram parte das informações previstas no citado cadastramento de municípios suscetíveis a desastre, visando a qualificação das políticas públicas do setor. Segundo Paulo Ziulkoski, eterno presidente da CNM, a maioria dos municípios não tem estrutura técnica de geologia, projeto e orçamento apta para realizar atividades previstas na legislação, como a carta geotécnica de aptidão de áreas para a urbanização, bem como projetos de engenharia de obras de contenção de encostas. Dependem, portanto, de investimento federal, o que não ocorreu nos últimos anos (JN, 08/04/23). O que leva a crer que é necessário ampliar o investimento público na contratação de profissionais concursados para estruturação de órgãos públicos, além de serviços técnicos de consultoria.

Outra atividade prevista neste contexto são os Planos Municipais de Redução de Risco – PMRR. Segundo dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC/IBGE), de 2021, apurados pela CNM, dos 1.580 municípios do cadastro nacional de risco, apenas 729, ou seja, 46%, possuem PMRR. (CNM, 2023). Segundo o Serviço Geológico do Brasil, só 13% dos municípios gaúchos tem mapeamento de áreas de risco. Porto Alegre, por exemplo, apesar de já ter reunido dados sobre 142 áreas de risco, ainda não concluiu o seu PMRR, previsto para iniciar em março de 2024 e ser concluída no final de 2025. (UOL, 24/05/23). Em 2023, o Ministério das Cidades anunciou que vai financiar 20 planos municipais de risco, com apoio de universidades, uma amostragem muito pequena diante da demanda. Além do mais, diante da gravidade da enchente de 2024 e da perspectiva de novos eventos de grande magnitude, seria recomendável considerar um novo patamar de risco para as áreas urbanas, cabendo revisar os PMRR já existentes. Certamente, é importante investir no planejamento para redução de risco na escala do Estado do Rio Grande do Sul e nos seus municípios.

A legislação da Defesa Civil também prevê adições aos planos diretores municipais de municípios vulneráveis a riscos de desastres, o que deve ser realizado de maneira integrada aos planos municipais de redução de risco. Segundo o regramento da Defesa Civil, os Planos Diretores (PDs) destes municípios devem incluir um mapeamento das áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, bem como um planejamento de ações preventivas, incluindo contenção de encostas, drenagem urbana e reassentamento. Além disso, os PDs devem prever a realocação de população de áreas de risco de desastre, a demarcação de zonas especiais de interesse social e a regularização fundiária de assentamentos urbanos que atendam às diretrizes de salubridade e segurança. 

Note-se que a legislação da Defesa Civil é voltada para assentamentos precários, o que deverá ser revisto após as enchentes de 2024, que também atingiu áreas de classe média e o centro comercial das cidades. De qualquer forma, seria importante apurar qual a característica das áreas vulneráveis à risco de enchentes e qual o percentual das áreas atingidas são ocupadas por assentamentos precários, bem como, identificar quais os sítios que deverão ser permanentemente desocupadas e a população reassentada por meio de políticas habitacionais de interesse social. Não são conhecidas informações a respeito da inclusão das medidas de prevenção de risco nos PDs de municípios gaúchos, o que seria muito importante providenciar, inclusive por iniciativas dos profissionais.

De fato, a legislação da Defesa Civil prevê a elaboração de um plano de implantação de obras e serviços para a redução de riscos de desastre, na escala municipal (Lei 12.608/2012, Artigo 3-A, acrescida pela Lei 14.750/2023), mas não se tem notícia da elaboração deste instrumento pelos municípios (há que se considerar que esta exigência foi inserida na lei já no final de 2023). Contudo, é importante observar a histórica dissociação entre os instrumentos de planejamento urbano, especialmente de planos diretores municipais e os investimentos realizados nas cidades, o que já foi amplamente demonstrado e sustentado por autores como Villaça (1999) e Maricato (2000). No caso de Porto Alegre, a ausência de um planejamento ficou evidente com a falta de investimentos nos serviços de manutenção da estrutura de contenção de cheias do Lago Guaíba, como foi amplamente noticiado pela imprensa. Resta identificar as providências que estão sendo tomadas para elaborar este plano de obras e serviços, tanto em municípios gaúchos como também em outras cidades em risco do país.

As medidas previstas pela Defesa Civil também buscam proteger a população da vulnerabilidade ambiental, seja em eventos adversos de origem natural ou em situações de risco induzidas pela ação humana. Neste sentido, a Lei 12.608/2010 acrescenta exigências para emissão de licenças ambientais, como a elaboração de planos de contingência, cadastros demográficos e a definição de medidas para proteção ambiental, histórica e cultural quando são identificadas situações de risco em empreendimentos urbanos. Além disso, a legislação mencionada torna obrigatório incluir a educação ambiental no currículo das escolas de ensino fundamental e médio. No sentido geral, o regramento federal valoriza a legislação ambiental e os procedimentos para licenciamento ambiental, justamente o contrário do que vem sendo promovido por governos estaduais e municipais, em diversas medidas, como vem sendo amplamente noticiado, tanto para as cidades, como para o  campo, a exemplo da autorização para construção de barragens em área de preservação ambiental, aprovada pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul.

Intervenções tão vultuosas previstas para as cidades, certamente, dependem de investimento federal na política habitacional, tanto na produção de novas unidades quanto na implantação de infraestrutura urbana, visando a regularização, a segurança e o reassentamento de assentamentos precários. É importante notar a falta de continuidade de uma política habitacional no país, que teve um último pico de produção de novas unidades com o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), criado em 2009, e de obras de regularização com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), também do mesmo período. No entanto, são conhecidas as críticas a estes programas, especialmente ao PMCMV, controlado por grandes empreiteiras, apartado de políticas urbanas democráticas e dos Planos Locais de Habitação de Interesse Social. Não se tem conhecimento do número de unidades do PMCMV utilizadas para o reassentamento de famílias moradoras de áreas de risco. 

Vale a pena lembrar que, apesar dos investimentos em habitação social via PMCMV,  não houve uma disponibilização efetiva de recursos do Governo Federal para o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (Lei 11.124/2005), o que poderia fortalecer mecanismos de decisão de investimentos com participação de representantes da sociedade. Além disso, é importante destacar a falta de recursos para Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social (ATHIS) que poderia ser muito utilizada em iniciativas de reconstrução de moradias. Resta identificar de que forma e em que escala estas ações estão inseridas na política habitacional do Governo Federal, Estado e municípios.

Além dos instrumentos de planejamento urbano e de produção habitacional, a legislação da Defesa Civil exige o controle e a fiscalização para evitar a edificação em áreas suscetíveis à ocorrência de desastres é fundamental para a política de prevenção. Esta é uma responsabilidade dos municípios, que estão com dificuldade de exercê-la plenamente, o que é demonstrado pelo alto percentual de assentamentos irregulares nas cidades.  Em Porto Alegre, por exemplo, o número de áreas consideradas de alto risco aumentou cinco vezes na última década, abrangendo mais de 84 mil pessoas, como foi apontado pelo Serviço Geológico do Brasil (G1, 3/4/2023). 

De fato, os assentamentos informais são uma realidade na maioria das cidades brasileiras. Como não há alternativas formais de habitação social, a população de menor renda ocupa as áreas mais frágeis e providencia sua moradia por autoconstrução, com a conivência do poder público, criando novos assentamentos em risco ou adensando e expandindo os existentes. Um controle mais rígido do uso e ocupação do solo é uma medida considerada antipática pela grande maioria dos governos municipais, independentemente do seu viés político. Este é um tema essencial para as cidades, a ser valorizada e cobrada principalmente pelos profissionais do desenvolvimento urbano.

O conjunto de medidas de planejamento urbano, investimento em infraestrutura, produção de habitação e fiscalização de uso e ocupação do solo nas cidades deve se guiar pelo Estatuto da Cidade, em especial no que se refere à gestão democrática da cidade, por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade local na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, a fim de garantir o direito à cidades sustentáveis, abrangendo diversos aspectos, incluindo evitar a exposição da população a riscos de desastres (Lei 10.257/2001, Inciso V, h, Artigo 2). 

No caso em curso no Rio Grande do Sul é importante sublinhar que a contratação de uma consultoria internacional voltada para interesses privados, como foi promovido pelo Estado e pela Prefeitura de Porto Alegre, com objetivo de gerenciar a recuperação das cidades assoladas pelo desastre, vem a ser exatamente a antítese gestão democrática da cidade, prevista no Estatuto da Cidade. Trata-se de mais um exemplo da ascensão do capitalismo de desastre, como definiu Klein (2008). Para enfrentar essa situação, seria pertinente as entidades representativas da sociedade civil, com arquitetos e urbanistas embandeirados, levantarem-se em defesa da gestão democrática da cidade e solicitar a constituição de fóruns representativos, e ou a utilização de órgãos existentes, como os Conselhos e Conferências das Cidades, onde venham a ser debatidos e definidos, com objetividade, as diretrizes e os investimentos e outras medidas necessárias para a recuperação das cidades, conforme prevê o Estatuto da Cidade.

A visada geral e resumida aqui apresentada, abrangendo a Lei Federal de Defesa Civil, legislações e políticas públicas da área do planejamento urbano e da habitação social, evidencia que não faltam legislações para o enfrentamento das situações de desastre no país, mas falta a implementação de políticas públicas que atendam à legislação, falta as entidades da sociedade civil fazerem coro e ampliar a cobrança das medidas necessárias para evitar novas tragédias, falta o Ministério Público se mobilizar para que sejam tomadas medidas judiciais pertinentes, falta implementar memoriais públicos para que a população e os gestores não se esqueçam da história, como parece ter acontecido com as cheias ocorridas no Rio Grande do Sul em 1941.  

Diante deste cenário, resta à sociedade civil se mobilizar no sentido de elaborar propostas de ações e cobrar dos entes federados e órgãos públicos o cumprimento da legislação em vigor e a implantação de políticas públicas, enxergando uma oportunidade neste momento de crise. No bojo da sociedade civil, deve-se destacar a atuação dos arquitetos e urbanistas, engenheiros, geógrafos, movimentos de moradia, organizações comunitárias, culturais e outros grupos expressivos das cidades, incluindo os conselhos profissionais, que têm recursos financeiros, a fim de cobrar e propor a adoção de medidas considerando itens como os relacionados abaixo:

1 – Cumprimento da Lei 12.608/2012 (revisada pela Lei 14.750/2023), com adoção das medidas previstas relativas ao planejamento e ao desenvolvimento urbano e habitacional;

2 – Elaboração ou revisão dos Planos Municipais de Redução de Risco, considerando o patamar de risco imposto pelos eventos extremos observados com as mudanças climáticas;

3 – Revisão dos Planos Diretores e dos Planos de Habitação de Interesse Social, de maneira integrada, considerando reassentamentos pertinentes, garantindo o Direito à Cidade;

4 – Instituição de fóruns ou utilização de Conselhos e Conferências das Cidades onde sejam definidas diretrizes para os investimentos públicos e outras medidas necessárias para a recuperação das cidades e realizado o controle social dos recursos;

5 – Revisão da política nacional de habitação, garantindo recursos federais contínuos para o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), associado aos Planos Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS), com recursos para ATHIS, e para a produção contínua de habitação de interesse social, com aproveitamento de vazios urbanos;

6 – Implantação de programa federal com investimentos contínuos em infraestrutura urbana, para fins de regularização urbanística e fundiária de assentamentos irregulares, com contenção de encostas e reassentamentos de população moradora em áreas de risco;

7 – Investimentos continuados de estados e municípios em infraestrutura urbana, especialmente na manutenção para prevenção de cheias e de estabilização de encostas;

8 – Ampliação e valorização de quadros técnicos de arquitetura, urbanismo, engenharia e afins, nas estruturas públicas dos municípios e do estado;

9 – Recuperação e preservação ambiental e criação de parques e espaços públicos nas áreas assoladas pelos desastres ambientais nas cidades do Rio Grande do Sul; 

10 – Criação e implantação de Memoriais do Desastre, visando a educação ambiental e a previsão de novas catástrofes, realizando concursos públicos para ampliar a comunicação.

Imagem: FNA

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