Maria José Malheiros: Arquiteta e urbanista, militante e a última clandestina do Brasil

“Se tem algo que é terrível é estar sempre escapando. E eu vivi essa sensação até com uma certa culpa, porque todos aqueles que conhecia ou tinha contato acabavam sendo presos, mas eu sempre conseguia escapar. Foi aí que nasceu meu apelido de ‘perigosa'”. A frase é de Maria José Malheiros, no passado a ‘perigosa’, hoje uma mulher que vive intensamente cada dia de liberdade no alto de seus 71 anos, completados em 9 de setembro. Maria José foi a última brasileira na clandestinidade a se beneficiar da Lei da Anistia de 1979.

Somente em 24 de outubro de 2013, mais de três décadas após a publicação da lei, a baiana de Palmas de Monte Alto, nascida Maria Neide de Araújo Moraes reuniu coragem e conquistou a absolvição do Estado Brasileiro pelos apontados “crimes” políticos cometidos ao longo do período da ditadura militar. O decreto que lhe concedeu a Anistia, de número 600, foi publicado pelo Ministério da Justiça em 31 de março de 2014, para marcar os 50 anos do golpe militar. O fato marcou um novo começo para uma mulher que, ao longo de uma vida toda sustentada na clandestinidade, adotou diferentes nomes, histórias e endereços que a fizessem escapar do mesmo destino de muitos dos seus amigos: a prisão, a tortura e a morte.

A militância de Maria José Malheiros começou bem cedo, em 1964, quando sua vida começou a mudar. Naquele ano, em Goiânia (GO), participou da sua primeira manifestação estudantil, em uma caminhada até a Praça Cívica em apoio ao então governador Mauro Borges, que estava sendo obrigado a renunciar.

Três anos após o golpe de 1964, ingressou em um ambiente contestador, a antiga Escola de Belas Artes, atual Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Foi quando passou a militar no movimento de esquerda Ação Popular (AP) ao mesmo tempo em que já trabalhava como chargista do Jornal O Popular, de Goiânia. “Naquele momento eu me questionava: quero fazer revolução ou ser artista?”. Era ela que ilustrava os editoriais e, após duas investidas da censura, todos exemplares da publicação foram destruídos e Maria José, demitida por justa causa.

Maria José Malheiros conta que por duas vezes foi presa pelo regime quando ainda não tinha 18 anos. Em 1969, depois do AI-5, a situação piorou. O cenário era de muitos militantes na clandestinidade. “Houve o movimento de expulsão dos membros do diretório acadêmico. Fui expulsa, e isso levou meus companheiros a invadirem a EBA e picharem toda a escola em protesto contra as expulsões”, conta. Maria José, na época ainda a Maria Neide de Araújo Moraes, foi sequestrada e presa por pichação e distribuição de panfletos subversivos. “Não fui torturada, mas incitada de alguma forma a me suicidar. No interrogatório diziam: se você quiser pode pular (janela). É a única forma de você sair daqui. Tudo era para me desestabilizar e entregar o nome dos companheiros.” (trecho extraído do documentário A Última Clandestina, do diretor Jorge Felippi).

Maria José não delatou ninguém e acabou sendo solta. Para não ser mais presa, ao completar 18 anos Maria José passou grande parte do período militar percorrendo cidades brasileiras, sempre com os militares no seu encalço. Em São Paulo, atuou como militante de Ação Popular (AP) no movimento sindical bancário. “Havia também um trabalho mais clandestino e amplo, de panfletagem e de denúncia à situação política do país”, lembra. Todos os militantes bancários de AP acabaram sendo presos, inclusive seu companheiro Heládio José de Cams Leme, com exceção de Maria José, que foi avisada a tempo da investida da polícia.

A trajetória de fuga de Maria José incluiu ainda o Rio de Janeiro, como militante do PCdoB, e Vitória da Conquista, na Bahia, ocasião em que passou a atuar no movimento de jovens, esperando a organização da guerrilha que deveria ser implantada na região e onde recebeu seu primeiro nome clandestino – Maria José Novaes – registrada como filha legítima do dirigente da Ação Popular e do PCdoB, José Gomes Novaes. Seu companheiro Heládio – um dos presos no episódio da investida contra os bancários – foi solto em novembro de 1972. O PCdoB na época não queria que o casal ficasse junto porque era arriscado e organizou a ida de ambos para o Chile – solução finalmente não acatada pelo casal, visto o golpe militar em preparação. Sua vida seguia na clandestinidade, o que a forçou a buscar uma nova identidade, a terceira e última, que acabou adotando para uma vida inteira. Em contato com sua mãe em Goiânia, conseguiu o novo registro de nascimento: sua mãe foi ao cartório e a registrou novamente, dessa vez na ‘vaga’ de um filho que tinha falecido. Ela saiu de Goiânia com o registro de Maria José Malheiros.

Em meados de setembro de 1973, o casal chega em Salvador na tentativa de recomeçar a vida. Com a certidão em mãos, Maria José obteve a carteira de trabalho e conseguiu emprego como desenhista de arquitetura através dos amigos que a ajudaram a se instalar. “Naquela época minha vida estava mais normal, embora ainda vivesse na clandestinidade”, relata. Pouco tempo depois, em 1976, ao mesmo tempo em que engravidou de seu primeiro filho, veio uma escolha que acabou dando uma guinada na sua trajetória: passou a cursar Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA). A militância permaneceu junto ao movimento estudantil, na reconstrução da UNE e na luta pela anistia ao lado de companheiros como Emiliano José, José Sergio Gabrielli, Lidice da Matta e tantos outros.

Um novo recomeço
A Arquitetura e a sede por uma nova vida, porém, levaram Maria José à França em 1982, onde fez mestrado e doutorado em Urbanismo e onde conheceu seu segundo marido com quem teve o segundo filho. Lá adquiriu a nacionalidade francesa, mas apesar da vida estar entrando na normalidade ela permanecia em uma crise pessoal de identidade, pois ainda no exterior continuava como clandestina. “Eu continuava com medo, tinha sempre que tomar muito cuidado. O medo de ser descoberta me acompanhou para fora do Brasil.” Em 1984, no final da ditadura militar, retornou ao Brasil para uma audiência na Auditoria Militar de São Paulo na tentativa de ter seu verdadeiro nome reconhecido pelo Estado, porém sem sucesso. “Pensava, vou morrer clandestina”, conta. De volta à França para junto da família, viu a carreira como Arquiteta e Urbanista deslanchar – trabalhou na prefeitura de Dourdan na revisão do Plano de Ocupação do Solo e em projetos de espaços públicos, foi professora no Instituto de Urbanismo de Paris e em seguida foi trabalhar na prefeitura de Paris onde permaneceu durante 25 anos até se aposentar. Foi arquiteta de inúmeros projetos de espaço público na Direction de la Voirie, trabalhou no Secrétariat Général de la ville de Paris – Délegation Générale de la Coopération Territoriale sobre projetos comuns entre Paris e cidades da metrópole parisiense e finalmente na Direction de la Protection de l’Environnement.

Somente em 2011, por fim, ela decidiu ingressar com o pedido de anistia junto à Comissão da Anistia constituída pelo governo federal, graças à insistência do jornalista e escritor Emiliano José, que não se conformava com sua situação de eterna clandestina. Não foi um processo fácil – Maria José praticamente teve que ser convencida de que o Estado daria uma resposta à ela: a de que a democracia iria prevalecer. “Minha mãe dizia: está todo mundo anistiado, pede a sua também”, recorda.

Com o estímulo também da mãe, do marido e dos companheiros de luta, ela conseguiu a liberdade e também o direito inédito que reconheceu seu último nome como legítimo e lhe permitiu recuperar sua verdadeira data de nascimento. Foi o início do fim de longos anos de medo e de múltiplas identidades que lhe traziam lembranças traumáticas. A identidade resgatada encerrou 40 anos de constrangimentos. “Pela primeira vez na minha vida eu caminhei em São Paulo, sozinha. Sempre enxerguei São Paulo com medo. Mas após a anistia, passei a achar a cidade linda”, comentou sobre o dia em que foi à solenidade diante da Comissão de Anistia em São Paulo, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

Maria José Malheiros está livre. Na França, onde mora até hoje, as lembranças se mesclam com sua rotina, mas têm um impacto emocional cada vez menor. Ela permanece na luta pela democracia no Brasil e atuou fortemente na militância pela eleição de Lula à presidência da República. Sua história a impede de se calar diante de perda de direitos e da desigualdade, inclusive em Paris, onde continua na militância sindicalista da CGT e também integra outros movimentos de luta.

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