Futuro das cidades pós Covid-19 já começa a ser desenhado

Por Vitorya Paulo/Imprensa FNA

As cidades mudaram para sempre. A pandemia de coronavírus revolucionou o conceito de viver em coletividade e imprimiu novos hábitos que ficarão incorporados à rotina mesmo após o controle da Covid-19. Pesquisa elaborada pela consultoria Cushman & Wakefield, especialista global no ramo imobiliário, indica que 74% das grandes empresas no Brasil pretendem instituir o home office como prática definitiva, posição que trará efeito em cascata no transporte público, na mobilidade, no comércio e no uso dos espaços públicos e privados. Nesse processo, arquitetos e urbanistas e demais profissionais que se debruçam sobre o planejamento urbano e arquitetônico têm grandes desafios pela frente.

Um dos primeiros fenômenos já sinalizados pelos especialistas é o esvaziamento de salas comerciais, o que deve elevar o estoque imobiliário, prevê o arquiteto e urbanista Zeca Brandão, professor na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “O arquiteto terá de ocupar o papel de reprogramar esses edifícios”, pontua. Os próprios espaços de trabalho terão de ser reformulados e já há profissionais de olho nessas possibilidades. É o caso do arquiteto e urbanista gaúcho Maurício Santos, sócio do escritório Hype Studio, de Porto Alegre (RS). Segundo ele, é tempo de priorizar os momentos de convivência nos ambiente corporativos, com menos estações de trabalho e mais flexibilidade, com espaços que facilitem as interações entre colegas, parceiros e clientes. “Se estamos conseguindo substituir o nosso tempo de trabalho em frente ao computador por nosso trabalho em casa, para que precisaremos de nossos espaços profissionais?”, questiona.

Outro segmento que deve sofrer mudanças consistentes é o comércio, principalmente os shoppings. Conforme projeta a coordenadora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), Maria Alice Dias, os ambientes comerciais precisarão sofrer alterações nos sistemas de climatização de forma a garantir a renovação constante do ar. Espaços de higiene, bebedouros e banheiros também precisarão ser totalmente repaginados. “Já sabemos que a resistência do vírus muda nas superfícies em diferentes materiais, e isso pode influenciar nas escolhas dos clientes”, acredita.

Os projetos voltados ao varejo também tendem a ser impactados pela expansão do comércio online, alerta Santos. “Não vislumbro um retrocesso significativo deste movimento após a passagem da pandemia, pois há claras vantagens no comércio virtual. As lojas terão que passar por uma transformação conceitual. Precisarão passar a ser lugares de experiências que não são possíveis no mundo digital”, pontua. Além disso, para ele, as moradias também terão de se adaptar a essa nova forma de consumir, agregando estruturas para o recebimento das compras, por exemplo, como um espaço à parte da casa apenas para a higienização dos produtos.

Ainda no ambiente residencial, Maria Alice afirma que a relação das pessoas com o trabalho e com o morar será diferente, visto que o home Office se expandirá. “Como compatibilizar o espaço de produção e de conforto? Como tornar esses espaços mais flexíveis?”, cita ela ao lembrar de apenas algumas questões que estão na cabeça dos arquitetos que projetam residências nesses tempos de pandemia. A casa, acredita ela, deve ser um ambiente que preza pela saúde mental das pessoas e, com o isolamento social, esse tema precisa ganhar mais atenção. “Acredito em mais sacadas, terraços, balcões. Uma casa que se abre para a rua”, diz.

A relação com a rua, da porta pra fora de casa, também deve mudar. A ocupação de espaços públicos, para a arquiteta e urbanista, será um desafio para gestores, arquitetos, engenheiros, paisagistas e demais profissionais que pensam a cidade. Lugares em contato com a natureza e praças de bairro deverão ser mais valorizados quando a fase de isolamento passar. “Talvez haja aplicativos em que as pessoas possam consultar se o espaço está muito lotado, para decidir se vão ou não para a aglomeração”, supõe Maria Alice.

Para a professora, outro segmento que passará por grandes transformações será o de restaurantes, que precisarão estar preparados para uma época em que abrir as portas será sinônimo de ter espaço de sobra. Basta verificar as mudanças drásticas verificadas em restaurantes ao redor do mundo. Em Amsterdã, na Holanda, o renomado restaurante Eten, que funciona no centro de artes Meiamatic, investiu em estufas de vidro que isolam as mesas em grupos de até três pessoas. Um espaço seguro onde nem o garçom precisa adentrar para servir as refeições.

Anne Lakeman / Mediamatic Amsterdam

Invariavelmente, todos esses aspectos mudam a configuração da mobilidade urbana. Os transportes coletivos do futuro representam uma incógnita. Uma das tendências é maior investimento em rede cicloviária das cidades. “Já existe empresas que fabricam ônibus, como a Marcopolo, que estão adaptando os veículos”, frisa a coordenadora do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do RS (Ufrgs), Marta Peixoto. Além das mudanças estruturais, a pós-pandemia vem com efeito colateral positivo sobre o comércio local, que deve passar a ser mais valorizados exatamente por exigir menor deslocamento.

Mas engana-se quem pensa que revoluções como essa são novidade na história do urbanismo. Os problemas sanitários e epidemiológicos estão intimamente atrelados ao desenvolvimento das cidades e ao urbanismo. “Entre os séculos XIX e XX, grandes centros sofreram reformas urbanas com a derrubada de casas da população de baixa renda para combater a febre amarela e a varíola”, explica Brandão. Segundo o professor, como essas famílias não tinham para onde ir e se recusavam a ocupar as zonas periféricas do Rio de Janeiro, muitas acabaram formando a primeira favela central da cidade: o Morro da Providência.

Ao citar as comunidades, Brandão destaca que as periferias estão sentindo os prejuízos da pandemia com mais intensidade pois, muitas vezes, não contam com sistemas de saneamento básico e de abastecimento de água potável. “O poder público instala uma narrativa higienista e sanitarista e diz que as favelas são o epicentro da pandemia. A contaminação começou nos bairros ricos”, alerta Brandão. Para o arquiteto e urbanista, é necessário que o poder público invista em infraestrutura urbana nos territórios mais vulneráveis e dê a devida atenção a esses locais. De mesma forma pensa Maria Alice, que complementa: “Devemos pensar na atuação dos arquitetos junto às pessoas menos favorecidas. A pandemia abre uma frente de trabalho para a Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social”, pontua. Para Brandão, a classe de arquitetos e urbanistas deve discutir essas questões com mais afinco daqui para frente. “A cidade tem que se reinventar”, afirma.

Foto principal: Zé Barretta/iStock

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