Contra a neocolonização e a evasão dos acervos brasileiros de arquitetura

Em defesa dos acervos brasileiros de arquitetura

O Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro alerta para a neocolonização dos acervos de Arquitetura em curso no país, com a venda e dispersão de documentos históricos fundamentais, com a complacência das instituições brasileiras.

Nos últimos anos, foram enviados ao exterior acervos documentais de arquitetos e urbanistas responsáveis pela construção de nosso patrimônio cultural edificado. Em 2020, transferiu-se o acervo de Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) e, no ano seguinte, o de Lucio Costa (1902-1998). Hoje, ambos se encontram na Casa de Arquitetura de Matosinhos, Portugal. 

Este Fórum vem debatendo este tema e tem apresentado a diversas instituições a demanda pela elaboração conjunta de uma política nacional de acervos de arquitetura e urbanismo, capaz de salvaguardar imediatamente os acervos ameaçados de deterioração, desintegração ou evasão para o exterior. Deve-se buscar fomentar, a médio e longo prazo, o desenvolvimento e fortalecimento de espaços institucionais capazes de gerenciar a guarda, a preservação e a difusão destes importantes documentos, que não apenas dizem respeito e estão estreitamente vinculados ao nosso patrimônio edificado, como possuem valor cultural próprio. 

Desde o Seminário Nacional de Patrimônio, promovido  pelo Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) em julho de 2022, o Fórum vem apresentando publicamente uma proposta de política pública estruturada para acervos de arquitetura e urbanismo, em torno de elementos como um Cadastro Nacional de Acervos; padrões nacionais de gestão e preservação dos acervos; a elaboração e a implementação de instrumentos de salvaguarda de acervos de interesse público e permanentes; e mesmo um Sistema Nacional de Acervos de Arquitetura e Urbanismo. 

Tal política pública estruturada, aberta à participação das entidades e órgãos públicos, foi apresentada diversas vezes ao CAU/BR, ao Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ), ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que se mostraram, em princípio, favoráveis à pauta. Em dezembro de 2022, o CAU/BR anunciou o estabelecimento de um protocolo de intenções com o Arquivo Nacional, com vistas à estruturação de uma Casa da Arquitetura no Brasil. Com a mudança da gestão do Conselho, não foram anunciados quaisquer avanços nesse sentido. 

Com apoio de diversas entidades do Fórum, o CONARQ instalou Câmara Técnica específica para elaborar propostas com vistas a fomentar a preservação dos conjuntos documentais de arquitetura no Brasil. Tal iniciativa teve como produto a promulgação da resolução CONARQ/MGI n.56, de 15 de outubro de 2024, com “Diretrizes para o tratamento técnico de arquivos relacionados à arquitetura e ao ambiente construído”. Embora essas diretrizes sejam importantes enquanto manual no âmbito da gestão e conservação internas dos acervos, não se tratou do mais importante: as diretrizes políticas para salvaguarda dos acervos de arquitetura e urbanismo, garantindo sua manutenção em território brasileiro. Em reunião com representantes do Fórum em 2023, o CONARQ indicou que a Declaração de Interesse Público e Social, prevista na lei 8.159/1991, não constituiria instrumento de salvaguarda adequado para impedir a transferência de acervos para o exterior.

Em abril de 2024, o Fórum realizou uma reunião com o Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (DEPAM) do IPHAN, tendo como pauta a acelerada e significativa perda de acervos documentais de arquitetura e urbanismo no país e a necessidade de formular instrumentos eficazes de salvaguarda e de permanência em solo brasileiro desses acervos. O DEPAM/IPHAN solicitou ao Fórum uma lista indicativa de acervos efetivamente ameaçados de evasão, lista essa que foi encaminhada ao IPHAN em 8 de maio de 2024. Enquanto insistíamos por uma resposta do IPHAN no sentido de continuarmos com as reuniões sobre o assunto, fomos surpreendidos em fins de outubro, por declarações emitidas pelo DEPAM/IPHAN em dois eventos (Congresso Brasileiro de Arquitetos, em Florianópolis e Enanparq, no Rio), que mencionavam o Fórum (que não estava representado formalmente em nenhuma das duas sessões) e explicitavam a postura assumida pelo DEPAM, e que davam a entender que a preservação desses acervos em solo brasileiro não seria prioritária para a instituição, mas sim a preservação de “outros patrimônios”. Como desdobramento da situação deflagrada, aconteceu uma reunião, durante o Arquimemória 6, em Salvador, entre a direção do DEPAM/IPHAN e a Coordenação do Fórum, para esclarecer a situação relatada e restabelecer o diálogo entre ambos.

Este Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro luta pela multiplicidade e diversidade do nosso patrimônio, legado advindo das nossas ancestralidades, venham de comunidades tradicionais de detentores, do  desenvolvimento urbano, da oralidade, da arte, da escrita ou da pedra e cal.  

Tal preocupação por “outros patrimônios” encontra-se explicitada no documento intitulado de “DIRETRIZES INTEGRADORAS PARA FUTURAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PATRIMÔNIO CULTURAL” entregue pelo Fórum ao GT de Cultura da equipe de transição da atual gestão do Governo Federal, em 13 de dezembro de 2022. Cabe aqui, também, reconhecer que tais diretrizes (em documento que reproduzimos novamente, agora em anexo) foram encampadas pela atual gestão do referido órgão que as têm explicitados em várias manifestações públicas. 

O IPHAN tem encontrado no Fórum um vigilante colaborador pela preservação do patrimônio cultural brasileiro, mas também um propositor e defensor das posturas que considera mais apropriadas para a adequada e eficaz defesa de nossos bens culturais, a partir das manifestações das 26 entidades da sociedade civil que o compõem. Nesse sentido, entendemos ser fundamental que se fortaleçam os canais de interlocução e comunicação entre as partes, evitando que atitudes como as relatadas nesses eventos voltem a ocorrer e prejudiquem o necessário respeito recíproco.

Pode-se dizer que está em curso uma neocolonização por meio da exportação destes arquivos, com impactos imprevisíveis, certamente negativos, sobre conteúdos historiográficos que fundamental e que podem, também, construir novas perspectivas para o patrimônio cultural brasileiro, edificado ou não. Além disso, o envio desses arquivos ao exterior terá impactos sobre a comprovação de direitos que tais documentos permitem, por dizerem respeito à construção de nossas cidades em particular e ao nosso território em geral. Essa neocolonização simbólica e material da ciência e do conhecimento produzidos no Brasil é inaceitável e vai em direção contrária aos esforços de reconhecimento e valorização de tantos quantos sejam os acervos brasileiros.

Conclamamos profissionais, estudantes, docentes, especialistas das diversas áreas das ciências e artes aplicadas, historiadores, geógrafos, antropólogos, cientistas sociais, arquitetos e urbanistas, e à sociedade como um todo, a se juntarem a nós em defesa desses acervos e pela cobrança de eficazes atitudes nesse sentido por parte do CAU/BR, do CONARQ, do Arquivo Nacional, do IPHAN e de todas as instituições públicas encarregadas da preservação de nossa memória.

A quem identifique algum acervo de arquitetura, urbanismo ou design em risco no Brasil, convidamos para se comunicar com o Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro, através do email [email protected], para agirmos conjuntamente.

Brasil, 8 de janeiro de 2025.

Subscrevem este documento as seguintes entidades:

  • ABA — Associação Brasileira de Antropologia
  • ABAP — Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas
  • ABGC – Associação Brasileira de Gestão Cultural
  • ANPARQ — Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
  • ANPOCS — Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
  • ANPUH — Associação Nacional de História
  • ARQUIFES — Rede Nacional de Arquivistas das Instituições Federais de Ensino
  • CBHA — Comitê Brasileiro de História da Arte
  • DOCOMOMO Brasil — Seção Brasileira do Comitê Internacional para a Documentação e Conservação de Edifícios, Sítios e Conjuntos do Movimento Moderno
  • FENEA — Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo
  • FNA — Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas
  • FNArq – Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil
  • IAB — Instituto dos Arquitetos do Brasil
  • ICOMOS Brasil — Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios 
  • PALMARES — Centro de Estudos e Assessoria por Direitos
  • PróIPHAN — Grupo formado por servidores aposentados do IPHAN
  • SBS — Sociedade Brasileira de Sociologia
  • TICCIH Brasil — Comitê Brasileiro para a Conservação do Patrimônio Industrial 

Arquivo da nota disponível aqui.

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