Estudantes criticam projeto de disciplina que exige área para empregados

Alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) criticaram uma disciplina intitulada “Casa Grande”, que exige a criação de um projeto para imóvel de alto padrão no município de Nova Lima (MG). O projeto prevê a organização de uma zona íntima de cinco suítes com banheiro completo e rouparia e, paralelamente, uma zona de serviço composta de cozinha, lavanderia, despensa, depósito, quartos e banheiros para oito empregados. Os estudantes afirmam que, dessa forma, o professor Otávio Curtiss, que passou a atividade em sala de aula, incentiva os discentes a projetarem “uma casa grande que incorpora a senzala e reforça os moldes de dominação em pleno século XXI”.

Em manifestação ao projeto, os alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo, representados pelo Diretório Acadêmico da Escola de Arquitetura da UFMG, publicaram uma nota coletiva de repúdio em que criticam o nome e o programa da disciplina de projetos flexibilizados (Pflex) Casa Grande. Eles apontam racismo e desrespeito na atividade proposta. Na nota, defendem que o programa da disciplina, agravado pelo nome, “fere e desrespeita estudantes que, em diferentes níveis, conseguem subverter a ordem escravista ainda existente no Brasil”, diz o texto.

Ainda conforme a nota, os alunos questionam a construção da grade curricular da universidade. “Sendo assim, questionamos a quem contempla a construção da grade curricular e a arquitetura fomentada pela universidade na formação dos alunos do curso voltada para uma classe elitista, a qual parte dos graduandos da escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, pretos, pobres e advindos de escolas públicas, não pertencem. Com essa proposta, o professor Otávio Curtiss reforça os padrões sociais que vão ao encontro das estruturas do Brasil Colônia e fogem da realidade da maioria dos indivíduos que compõem a população brasileira, utilizando a proposta da disciplina para justificar a produção de uma arquitetura racista.”

A UFMG, por sua vez, também divulgou uma nota. No documento, o presidente da Câmara Departamental do PRJ da Escola de Arquitetura da UFMG, Guilherme de Vasconcelos, explica que a Câmara ouviu o professor responsável pela proposta da disciplina e a representação discente. A partir disso, pondera que o Pflex foi implementado pelo PRJ no intuito de “ampliar a diversidade e a pluralidade de ofertas e a liberdade de escolha dos alunos”. Além disso, para que isso seja possível, preza pela autonomia de seu corpo docente na elaboração de suas propostas de disciplinas. “Contudo, ainda que a câmara do PRJ seja totalmente contrária à censura das propostas de Pflex, o racismo denunciado na nota coletiva de repúdio nos faz refletir sobre a disciplina, tendo em vista que o termo “Casa Grande” remete à carga histórica e sua correlação com a senzala, o que é agravado ao ser associado com o programa proposto. Ainda que o professor afirme que essa não tenha sido sua intenção, os efeitos nos sinalizam a necessidade de discutir o racismo estrutural”, cita no texto.

Na ocasião, Vasconcelos frisa que foi deliberado que a disciplina seja revista e submetida para aprovação pela Câmara Departamental visando evitar qualquer tipo de ambiguidade. Por último, se desculpou frente a todos que se sentiram ofendidos no desenrolar do episódio.

Conforme o 2º vice-presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), o arquiteto Edinardo Lucas, a arquitetura e urbanismo ainda traz o estereótipo de uma disciplina/ciência voltada às classes dominantes ou de alto poder aquisitivo, o que a faz ser carregada de preconceitos diretos e indiretos. Ao contrário disso, segundo ele, a FNA junto aos sindicatos estaduais defende a arquitetura e urbanismo como um dos meios para que as cidades sejam mais inclusivas. “O acesso à moradia, direito esse garantido pelo Art. 6º da Constituição Federal, deve acontecer no tecido urbano de forma que possibilite ao trabalhador escolher onde vai morar, possibilitando que trabalho e moradia sejam em distancias menores que possam ser percorridas no dia-a-dia”, explica.

A questão fundiária, para o arquiteto, é a chave para inclusão e diversificação do tecido urbano, tanto no que se refere a usos (habitação, comércio e serviços) como também na diversificação de classes sociais habitando o mesmo espaço. Por isso, é necessário que a academia viabilize essa compreensão de forma clara e coerente. “Devemos entender o contexto histórico, econômico, político e social em que viemos. Em um país de histórias recentes que não nos orgulham, é necessário fazer da arquitetura e urbanismo uma ferramenta de luta contra diversas injustiças. Aos alunos da UFMG todo apoio e agradecimento por resistirem e criarem um momento de reflexão sobre nosso fazer arquitetônico”, afirma.

 

Leia a nota do Diretório Acadêmico na íntegra e acesse o conteúdo da nota aqui.

NOTA COLETIVA DE REPÚDIO À DISCIPLINA CASA GRANDE

Belo Horizonte, Julho de 2017
À comunidade,
Nós, estudantes do curso de Arquitetura e Urbanismo, representados pelo Diretório Acadêmico da Escola de Arquitetura da UFMG viemos expressar nossa indignação quanto ao racismo e desrespeito contidos no nome e no programa da disciplina de projetos flexibilizados (Pflex) “Casa Grande” ofertada pelo professor Otávio Curtiss.

Historicamente, a casa grande e a senzala, em hierarquia, sempre se delinearam como pilares da ordem escravocrata no Brasil, estruturada em uma produção latifundiária completamente controlada pelo senhor do engenho, que tentava exercer poder sobre a vida de seus escravos, empregados e moradores. Após 129 anos da abolição da escravidão no Brasil, no entanto, a estrutura escravocrata ainda segue presente no cotidiano brasileiro. Como discutido em diversas disciplinas na EAD-UFMG, o quarto de empregada, por exemplo, tem como origem a segregação escravista. Ele surge como uma solução para separar empregados e patrões que permaneceram vivendo juntos após a abolição, em 1888. Com o crescimento das cidades e a verticalização urbana, as novas soluções de moradia mantiveram soluções arquitetônicas que perpetuam a separação entre patrões e empregados.

Ao propor um projeto localizado em um condomínio de alto padrão de Nova Lima com a organização de uma zona íntima de 5 suítes com banheiro completo e rouparia e, paralelamente, uma zona de serviço composta de cozinha, lavanderia, despensa, depósito, quartos e banheiros para 8 empregados, o professor Otávio Curtiss incentiva os discentes a projetarem uma casa grande que incorpora a senzala e reforça os moldes de dominação em pleno século XXI. O programa da disciplina, agravado pelo nome, explicitamente fere e desrespeita estudantes que, em diferentes níveis, conseguem subverter a ordem escravista ainda existente no Brasil.

Sendo assim, questionamos a quem contempla a construção da grade curricular e a arquitetura fomentada pela universidade na formação dos alunos do curso voltada para uma classe elitista, a qual parte dos graduandos da escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, pretos, pobres e advindos de escolas públicas, não pertencem. Com essa proposta, o professor Otávio Curtiss reforça os padrões sociais que vão ao encontro das estruturas do Brasil Colônia e fogem da realidade da maioria dos indivíduos que compõem a população brasileira, utilizando a proposta da disciplina para justificar a produção de uma arquitetura racista.

Questionamos também a posição do Departamento de Projetos em permitir a oferta da disciplina uma vez que está explícita as problemáticas do termo e do conteúdo propostos. O racismo institucional presente na Escola de Arquitetura vai de encontro a todos os esforços de inclusão expressados pela UFMG. Mais uma vez, os setores reacionários da universidade estão pouco preparados para receber a diversidade sociocultural do novo perfil de seus estudantes, reforçando suas estruturas racistas e como elas representam uma forma de dominação na sociedade atual.

Dessa forma, ressaltamos nossa inflexibilidade em aceitar uma disciplina que perpetue o racismo. Exigimos um parecer do Departamento de Projetos em relação à pretensão do professor Otávio Curtiss e à proposta da disciplina, bem como seu cancelamento.

Diretório Acadêmico da Escola de Arquitetura e Design da UFMG

 

Leia também a nota de manifestação da UFMG e acesse o documento aqui.

Ao Diretório Acadêmico da Escola de Arquitetura da UFMG (D.A.EA),

Em resposta à Nota Coletiva de Repúdio à Disciplina “Casa Grande” enviada pelo D.A.EA ao Departamento
de Projetos (PRJ) no dia 27 de julho de 2017, a Câmara Departamental do PRJ, reunida no dia 31 de julho
de 2017, ouviu o professor responsável pela proposta da disciplina e a representação discente, e se
posiciona a partir das seguintes considerações.

O grupo de disciplinas de projeto flexibilizadas (Pflex) foi implementado pelo PRJ no intuito de ampliar a
diversidade e a pluralidade de ofertas e a liberdade de escolha dos alunos. Para que isso seja possível, o
PRJ preza pela autonomia de seu corpo docente na elaboração de suas propostas de disciplinas. Contudo,
ainda que a câmara do PRJ seja totalmente contrária à censura das propostas de Pflex, o racismo
denunciado na nota coletiva de repúdio nos faz refletir sobre a disciplina, tendo em vista que o termo
“Casa Grande” remete à carga histórica e sua correlação com a senzala, o que é agravado ao ser associado
com o programa proposto. Ainda que o professor afirme que essa não tenha sido sua intenção, os efeitos
nos sinalizam a necessidade de discutir o racismo estrutural.

Para além dos esforços dessa Escola na árdua tarefa de se tornar mais democrática e inclusiva, e das
políticas públicas de ações afirmativas empreendidas nos últimos anos, principalmente por meio do
sistema de cotas para a população negra e pobre, esse episódio nos indica que temos ainda uma longa
jornada contra o racismo pela frente.

A Câmara do PRJ se compromete a não se furtar do desafio de erradicar atos discriminatórios de qualquer
natureza no âmbito do Departamento, agindo em consonância com a Resolução 09/2016 do Conselho
Universitário da UFMG de 31 de maio de 2016, que dispõe sobre a violação de direitos humanos. Por
conseguinte, reconhecemos como legítima a nota de repúdio escrita pelo D.A.EA e nos comprometemos
a aprimorar os processos de aprovação da oferta das disciplinas, tornando-os ainda mais criteriosos e
zelando para que não ocorram manifestações preconceituosas em suas formas explícitas ou veladas. Além
disso, nos comprometemos também a ampliar o debate acerca do papel das disciplinas de projeto no
âmbito de uma universidade pública e gratuita, visando balizar os objetivos dos Pflex.

Na reunião, deliberamos que a disciplina seja revista e submetida para aprovação pela Câmara
Departamental visando evitar qualquer tipo de ambiguidade. Deliberamos também que os alunos
matriculados no Pflex em questão não sofrerão nenhum ônus.

Cientes da importância da liberdade de pensamento e de expressão, da postura crítica e da autonomia
universitária, reafirmamos o nosso compromisso com a diversidade e pluralidade nas disciplinas desse
Departamento, sem perder de vista o combate às ideologias, valores e opiniões que contrariem os
princípios do Estado Democrático de Direito.

Por último, nos desculpamos frente a todos que se sentiram ofendidos no desenrolar desse episódio.

Atenciosamente,

Guilherme de Vasconcelos
Presidente da Câmara Departamental do PRJ
Escola de Arquitetura da UFMG

 

Rolar para cima