A favela tem direito à Arquitetura e ao Urbanismo, e o Estado tem obrigação de garanti-lo

No Rio de Janeiro, existem diversas cidades em uma só. Da zona sul à zona norte, do morro à beira do mar, várias realidades se delineiam pelas ruas. Na vasta pluralidade de espaços, porém, nem todos os cidadãos possuem o mesmo direito de acesso. E é com essa exclusão que a arquiteta e urbanista Monica Benicio, 34 anos, fica inquieta. Nascida e criada no Complexo da Maré, o mais populoso conjunto de favelas do Rio com aproximadamente 140 mil habitantes, Monica teve, na comunidade, a base das partes mais importantes da sua vida. Foi a favela da Maré que deu a ela a família, os amigos, o tema da pesquisa acadêmica e o amor: Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em 14 de março de 2018.

Graduada pela PUC-Rio em Arquitetura e Urbanismo, Monica nasceu e morou, até 2003, no Conjunto Esperança, uma das 16 comunidades que integram o Complexo Maré, lugar onde conheceu Marielle e firmou sua relação. “A Maré funciona como uma cidade, com todas as suas complexidades”, contextualiza. Era dali que saía todos os dias para se deslocar até “outra cidade”, no bairro da Gávea, um dos mais ricos da região, para estudar na faculdade. Nesse processo, com 19 anos e ainda cursando Psicologia, ela notou as nuances sociais entre um local e o outro. “Experimentar as diferenças entre os dois mundos era muito ruim do ponto de vista emocional. Entender que havia uma cidade com qualidade de vida muito melhor do que aquela com a qual fui acostumada não foi fácil. Enquanto favelada que vivia as ausências de políticas públicas diariamente, eu só conhecia a ineficiência do Estado. Quando conheci a Gávea, eu queria que a favela pudesse ter tudo aquilo também”, afirma.

Esses questionamentos a levaram a mudar de rumo e adentrar, finalmente, na profissão na qual é formada hoje. Em seu trabalho de conclusão de curso, abordou de que maneira o espaço urbano influenciava na construção da identidade do indivíduo na perspectiva do favelado. Para ela, há barreiras invisíveis, construídas ao longo dos séculos, que os excluem dos espaços da cidade formal, como a ausência de políticas públicas eficazes e quando o Estado se faz presente nesses espaços apenas de maneira violenta, além do massacrante discurso que perpetua a lógica de marginalização. “Quando você cresce onde a sociedade e o poder público ensinam a banalizar essa violência, você, em alguma medida, passa a naturalizar isso também. Foi só quando conheci outros espaços da cidade que meu sentimento como moradora da favela se modificou em relação às perspectivas de vida e passei a ansiar por melhorias e reconhecimento para os moradores de lá, igual aos da cidade formal”, afirma ela sobre o processo de conquistas e apropriações dos diversos espaços urbanos. Para Monica, é urgente e necessária a discussão da forma como a favela é percebida pela sociedade, quase sempre entendida como espaço das ausências, definida pelo que ela não é ou pelo que ela não tem em relação à cidade, fruto do tratamento imposto pelo Estado e suas políticas de baixa qualidade para com essa população desde sempre.

O assunto se desenvolveu até virar objeto de pesquisa no mestrado, que Monica iniciou em 2017, mesmo ano em que Marielle tomou posse na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. Em sua atuação parlamentar, a questão de gênero era constante. “Marielle defendia o direito das mulheres transitarem pela cidade com segurança. Entendia que o cotidiano de assédio e abusos a que estão submetidas nesses espaços são de responsabilidade também do município, como agente garantidor dos direitos fundamentais dessa população”, conta, destacando o projeto permanente que a vereadora propôs contra o assédio nos transportes públicos sob o mote: “O transporte é público, o corpo das mulheres não! Ir e vir é meu direito. Me respeitar é seu dever! Assédio sexual é crime.”. No gabinete, a vereadora do PSOL contava com uma equipe de mulheres arquitetas e urbanistas que mantinham a pauta da moradia e direito à cidade acesa, assunto de conversas entre ela e Monica, que acompanhava o trabalho de Marielle de perto.

“As mulheres, sobretudo as periféricas, são as que mais transitam pelo território. Elas cortam a cidade todo o tempo. Vão ao trabalho, às compras, levam as crianças para a escola, acompanham idosos. No entanto, quase não há mulheres, sobretudo as de origem periféricas, pensando, projetando e gerindo esses espaços, feitos e comandados historicamente por homens. Por isso, é importante a luta por mais mulheres ocupando mais espaços de poder também”, ressalta. Com o assassinato de Marielle, que ainda não tem resoluções mesmo depois de dois anos, os planos pessoais, como o mestrado, que era sua prioridade na época, foram deixados de lado para buscar justiça pela vida ceifada da vereadora. “Abandonei tudo na busca de justiça pela execução dela. Os últimos dois anos viajei ao redor do mundo me dedicando a isso “, expõe.

Na sua carreira, Monica atuou com cenografia, arquitetura residencial de luxo, trabalhou em construtoras, e, por fim, no planejamento aeroportuário. Ela acredita que a Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (Athis) é uma área fundamental para construir as cidades e tornar a vida dos desfavorecidos economicamente mais saudável. “Enquanto defensora dos direitos humanos, é meu papel defender o direito à vida de qualidade para todas e todos e, como arquiteta e urbanista, eu acredito profundamente que nosso campo tem uma contribuição fundamental para isso”, afirma. Para ela, a lógica de planejamento top-down (ou seja, de cima para baixo) é extremamente prejudicial para a vida das pessoas periféricas. “De forma geral, o arquiteto e urbanista deveria ter sensibilidade para estudar as particularidades do território da favela e exercitar a escuta para as necessidades do usuário final, que é o morador”, diz. Atualmente, Monica é assessora parlamentar do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL), cargo em que segue a luta por respostas pela morte de Marielle e batalha incessantemente pela vida das mulheres e dos moradores de comunidades, lugar de onde veio e ao qual seu coração sempre pertencerá.

O que elas querem das cidades:

– Segurança nos espaços públicos

– Urbanização pensada para mulheres

– Políticas Públicas voltadas para a ocupação segura das mulheres na cidade

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