LGBTQIAPN+ pertence À cidade? Pensando um espaço urbano do orgulho de ser

Rafael Bosa é Gay, Arquiteto e Urbanista, doutorando do Programa de Pós-graduação em Gestão Urbana da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).

Abra seu navegador de internet, vá a um site de buscas, digite uma dessas palavras: Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti, Transexual. O que você vê?
À primeira vista o Brasil parece um paraíso LGBTQIAPN+ nos trópicos, onde a homofobia é criminalizada, igualdade de direitos de união civil foi alcançada, acesso a herança, plano de saúde, licenças parentais, decreto acerca do uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais. Ao menos nesse olhar mais formalista e jurídico, o Brasil parece um país progressista e com avanços significativos nas pautas de orientação sexual e identidade de gênero.

Embora em constante ameaça, esses avanços são frutos da luta do movimento LGBTQIAPN+ e, em grande parte, resultado da intervenção do poder judiciário no poder legislativo. A morosidade do poder legislativo, entretanto, revela a complexa interseção entre as experiências individuais e as estruturas legais e normativas que moldam a vida das pessoas. As leis refletem na cultura, a cultura embasa as leis, no entanto, a lei não se legitima ao ser sancionada, isso é só parte da construção. Além da cultura, enquanto modelo comportamental da nossa sociedade, para assentar e assimilar o cumprimento dessa lei, é preciso todos os aparelhos de Estado agindo para que essa lei saia do papel. Quando o desafino entre ambas é muito grande, a contradição impera e se expressa, por exemplo, nos dados estarrecedores da violência contra a população LGBTQIAPN+, as mulheres e negros.

O país que mais consome pornografia trans no mundo (Portal Catarinas, 2023), é o mesmo que pelo 15º ano seguido carrega o título de país que mais mata travestis e transexuais no mundo (ANTRA, 2023). É também no Brasil, terra da maior marcha pela diversidade do planeta, que reúne cerca de 4 milhões de pessoas todos os anos, a Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ de São Paulo (EM, 2023), que em 2023, a cada 34 horas, uma morte de LGBTQIAPN+ foi registrada, assim, ao menos 257 pessoas perderam a vida para a violência LGBTfóbica no país (GGB, 2023). O país segue liderando o ranking de países que mais matam LGBTQIAPN+ (GGB, 2023).

Tais conclusões baseiam-se em informações coletadas na mídia, nos sites de pesquisa da Internet e correspondência enviada ao Grupo Gay da Bahia já que não existem estatísticas governamentais sobre esses crimes de ódio contra a população LGBTQIAPN+, logo, são subnotificados.
Falar da população queer, é falar de direitos não garantidos, de acessos não permitidos, ou seja, de invisibilidade perante o Estado. Passa por questionar o que é ser um cidadão? Milton Santos rebate a ideia de uma espécie de cidadania universal, a qual todos teriam acesso. Segundo ele “ser cidadão é ser como o Estado, é ser um indivíduo dotado de direitos que lhe permitem não só se defrontar com o Estado, mas afrontar o Estado”.

Para alguns grupos, principalmente quando falamos de grupos etnicamente subalternizados, mas também de outras “minorias”, Milton Santos afere uma cidadania mutilada: na educação, na moradia, na circulação, na saúde e na remuneração. Joice Berth nos indaga a pensar: e se a cidade fosse nossa? Uma cidade que não carregasse na sua forma e função a mutilação de cidadanias, naturalizada como parte inerente ao desenvolvimento e desenho urbano. Seria um passo inicial para se sentir pertencente a cidade, rumo a uma cidadania plena, onde pertencer, significa exercer o direito de ir e vir sem receio e, de participar da construção de um espaço urbano onde se reconheça e preserve a diversidade humana, com toda a dignidade e qualidade que isto acarreta.

O direito de participar plenamente da vida cultural e social significa ter acesso igualitário a todas as oportunidades, serviços e espaços que a cidade oferece, sem discriminação ou exclusão. Quando se trata da população LGBTQIAPN+ há uma negação do direito à cidade estabelecida em 3 dimensões, segundo Rodrigo Iacovini: 1- dimensão material: pessoas LGBTQIAPN+ tem acesso dificultado a serviços, a bens e a infraestrutura urbana; 2- dimensão simbólica: a lógica presente de ocupação da cidade é heteronormativa. As cidades são construídas, planejadas e decididas principalmente por homens brancos cisgêneros e heterossexuais. Isso influencia o modo de organização das cidades e as possibilidades de representação e disputa do poder simbólico; 3- dimensão política: LGBTQIAPN+ são subrepresentados nas instâncias decisórias de gestão das políticas urbana, no judiciário, executivo e legislativo. LGBTQIAPN+ não são considerados um grupo com necessidades específicas na formulação de políticas urbanas e de planos diretores.

A exclusão da população LGBTQIAPN+ também ocorre quando se discute a gestão das cidades a nível mundial. Como ilustração disso, a Nova Agenda Urbana da ONU elaborada em Quito no Equador em 2016 que “[…] representa uma visão compartilhada para um futuro melhor e mais sustentável em que todas as pessoas tenham direitos e acesso iguais aos benefícios e oportunidades que as cidades podem oferecer […]” (ONU, 2017, p. 4), não contribui para uma cidade mais inclusiva na perspectiva LGBTQIAPN+, apesar de apresentar elementos para um espaço público mais seguro, diverso em vivência e experiência, não há menção a essa população.

A perspectiva LGBTQIAPN+ deve ser matricial em todas as políticas públicas federais, estaduais e municipais: habitacional, de assistência social, fiscal, de emprego. Diversidade deve ser encarada como tema transversal, não elencada em sessões temáticas ou discussões paralelas. Isso é imperativo se falamos em alcançar a equidade em nossas sociedades. É importante entender que não há resolução de problemas sociais só via criminalização de comportamentos. É preciso fazer com que os valores que essa criminalização comporta sejam absorvidos pelos agentes de segurança, por quem fiscaliza o cumprimento das leis no Brasil e pelos organismos que implementam estas políticas públicas de direitos.

O afeto da população LGBTQIAPN+ ainda possui um aspecto profundamente político quando exercido em espaços públicos, gerando reflexões e impactando comportamentos em diferentes pessoas com realidades diversas. É preciso visibilizar para ocupar e, ocupar para visibilizar. Se um dos primeiros marcos de nascimento do movimento LGBTQIAPN+ foi a ocupação da cidade a partir do levante de Stonewall em 1969, a última fronteira imposta pela LGBTfobia terá sido rompida somente quando todas as pessoas LGBTQIAPN+ tiverem acesso pleno à cidade.

Esta proposição é uma denúncia das trajetórias dos corpos que historicamente se encontram em processo de desumanização, e ao mesmo tempo, uma aposta subversiva e emancipatória, a partir do pensamento intersecional, anti-lgbtfóbica e antirracista na luta contra as opressões, cuja materialidade se dá na forma hegemônica de produção das cidades. Apesar do debate e interesse crescente em torno dos temas que envolvem as ditas “minorias”, essas ainda são temáticas vista como puramente identitária.

A reflexão aqui proposta, não atende a uma pequena parcela da população, ela procura interceder sobre uma violência histórica de grupos inferiorizados. Não é “só” sobre as pessoas LGBTQIAPN+, é sobre a sociedade e a violência, mas também sobre a gestão de nossas cidades, mobilidade urbana, espaços públicos de qualidade e seguros. Deste modo, é injusto dizer que discutir leis sobre estas pessoas é falar só de uma minoria, estamos falando de direitos universais e justiça social. Nossa luta é por vida!

É preciso desnaturalizar a existência de um ser universal, para o qual as cidades são endereçadas. É sobre beber de outras fontes, pluridisciplinares, transfeministas e antiracistas. Chacoalhando as categorias binárias das identidades (ser e estar) para gerar novos tensionamentos, ampliar os horizontes e lugares de fala, assim como propõem Letícia Carolina do Nascimento e Helena Vieria. Uma cidade construída também por ideias insurgentes, conforme avista Faranak Miraftab, “como oportunidade e desafio ao planejamento progressista, para tratar das injustiças espaciais, ousando imaginar um futuro radicalmente diferente que seja mais justo e que corporifique um urbanismo humano”, e não ocupado por uma arquitetura hostil com viés aparofóbico. Assim, unindo-se a proposições reflexivas já existentes e ideias futuras, em que se pensa em comunidade as questões da população LGBTQIAPN+ e sua condição na cidade.

Essa discussão é também, portanto, sobre esperança, mas esperança do verbo esperançar como dizia Paulo Freire, porque “tem gente que tem esperança do verbo esperar”. E nós Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais, Arromânticas, Agênero, Pansexuais, Polissexuais, Não-binárias e mais, não esperamos, porque somos Marsha P Johnson, Sylvia Rivera, Madame Satã, Janaína Dutra, Erika Hilton, João Silvério Trevisan, Rodrigo Iacovini, Leci Brandão, Jean Wyllys, Duda Salabert, Erica Malunguinho, Marielle Franco, Mônica Benício, David Miranda, Marta, Silveiro Pereira, Tainá de Paula, Liniker, Daniela Mercury, Linn da Quebrada, Jup do Bairro, Pabllo Vittar, Jorge Lafond, Gloria Groove, Rico Dalassan, Majur, Cazuza, Michel Foucault, Laerte, Katú Mirim, Rita Von Hunty. Judith Butler, Paul B. Preciado, Renan Quinalha, Letícia Carolina do Nascimento e Helena Vieria.

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Orgulho não é a ausência de medo, mas é, mesmo com medo, ter orgulho de viver e ser quem somos!
“Achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver”, Conceição Evaristo em seu livro Olhos d’água.

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