A arquitetura e urbanismo têm se voltado cada vez mais para as questões vivenciadas por pessoas LGBTQIAPN+. A categoria profissional, nos setores público e privado, repensa o direito à cidade e ressignifica os espaços urbanos para que haja mais lugares com visibilidade, segurança e esperança.
Segundo a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), cerca de 20 milhões de brasileiras e brasileiros (10% da população), se identificam como pessoas LGBTQIAPN+.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em seu último Censo Demográfico, realizado em 2022, não abrangeu pessoas pertencentes à comunidade. De acordo com a diretoria de pesquisas, ao justificar a posição do instituto, foi feita pergunta sobre orientação sexual em estatísticas experimentais, contudo os resultados foram muito baixos.
Já a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) veiculada pelo Instituto no ano de 2023, aponta que entre as pessoas de 18 anos ou mais, 94,8% das pessoas se declararam heterossexuais, 1,2% homossexuais, 0,7% bissexuais; 1,1% não sabiam sua orientação sexual; 2,3% não quiseram responder; e 0,1% declararam outra orientação sexual.
A invisibilidade das representações e expressões de pessoas LGBTQIAPN+, cujos recortes também perpassam o racismo e o capacitismo, mostra que as cidades podem incorporar elementos discriminatórios que afastam a circulação desses corpos em determinados – senão todos – ambientes. Partindo da lógica que o espaço público é moldado pela percepção de mundo masculina cisheteronormativa, as demandas não normativas e de gênero muitas vezes são esquecidas, sendo uma delas o direito à cidade e de nela poder existir com pleno exercício da cidadania.
Sobrevivendo em uma realidade que marginaliza, pessoas LGBTQIAPN+ tem a área pública limitada ou mesmo negada. Atividades comuns como circular pela rua, utilizar o transporte público de maneira segura ou conseguir um emprego, tornam-se e são algumas das várias barreiras impostas a essas vidas.
Cenário que se repete no país e no mundo afora, a hostilidade segue presente no cotidiano, retira a possibilidade de vivência dentro da cidade e de circular onde bem entender. Desta maneira, a arquitetura se insere como instrumento social para falar abertamente sobre habitação e cidadania, evidenciando a urgência de garantir ambientes apropriados para as pessoas LGBTQIAPN+, mas também para todas, todos e todes
Para Andréa dos Santos, presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), “as entidades sindicais têm realizado mudanças efetivas para que a arquitetura convencional inclua medidas reais de segurança que consideram a vivência da comunidade LGBTQIAPN+”.
“Pensar a mobilidade urbana para reduzir mortes de pessoas trans e garantir sua segurança é o que mais prezamos, dado o fato que o Brasil é o país que mais as mata no mundo”, acrescenta.
Segundo Rafael Bosa, arquiteto e urbanista, doutorando do Programa de Pós-graduação em Gestão Urbana da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), o fomento à geração de emprego de profissionais de arquitetura LGBTQIAPN+ passa pela própria valorização da profissão e do fortalecimento de instituições representantes, como a própria Federação, os sindicatos e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), tal qual instrumentos como o ATHIS:
“Ao trazer a diversidade corporificada nos arquitetos e urbanistas, os projetos arquitetônicos, urbanísticos, paisagísticos tendem a ser mais representativos, assim, uma parcela maior da população se vê nesse profissional, como pessoa que traz a técnica para seu dia a dia, não um mero tecnicista. Penso ser essa também, uma maneira de acabar com essa visão elitizada que nossa profissão tem perante a sociedade.”
Quanto ao papel que a arquitetura inclusiva desempenha, a professora de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC (UFABC), arquiteta e urbanista queer/cuir, Sandra (San) Momm, explica que “é necessário repensar as estruturas sociais que estão reproduzidas nos projetos e planos de edificações, mobiliário e espaços urbanos e regionais que podem ser inclusivas, na medida que compreendem e propiciam essa diversidade, ou opressoras quando excluem ou criam barreiras para”.
Desta maneira, San destaca que “a representatividade nas entidades de classe e profissionais; já que a visibilidade não se trata apenas de quem vive e circula nos espaços e territórios, mas também é um ato político da área, de quem constrói o campo e de quem toma as decisões, como por exemplo, a criação de ações afirmativas na formação, tal qual cotas para pessoas trans nas universidades”.
“Os profissionais de arquitetura e urbanismo LGBTQIAPN+ mudam a percepção das cidades quando ocupam os lugares de decisão, quando tem oportunidade de colocar suas visões na mesa. É preciso visibilizar para ocupar e, ocupar para visibilizar. É por isso que eu digo que em todos os campos a nossa luta é por vida!”, concorda o arquiteto quanto ao imprescindível papel que as instituições de ensino superior desempenham na mudança de percepção das cidades.
Tal medida, “além de aumentar a representatividade no meio acadêmico e profissional, fortalece as organizações estudantis de pessoas LGBTQIAPN+, pressionando a comunidade acadêmica à mudança de condutas. Isto é, as políticas de diversidade sexual e de gênero quando implementadas, alteram ementas que diminuem a invisibilização, demandando assim novas posturas das pessoas que habitam tais contextos.”
“Quando pensamos na diversidade das pessoas, suas representações e vozes na sociedade, é fundamental pensar nas vivências das pessoas LGBTQIAPN+. Para pensar o espaço produzido pela arquitetura e pelo urbanismo não pode ser diferente. Especialmente pelas sub-representações e violências implícitas e explícitas que se expressam nos territórios e espaços de viver e de circulação”, acrescenta San, que também integra o grupo de estudo e escrita UFABCuir.
Como meio de fomento a discussões sobre a temática LGBTQIAPN+, a produção técnica, acadêmica e científica tem crescido com a finalidade de trazer dados, informações e participação ativa , como afirma San Momm:
“Repensar paradigmas – como a estrutura binária da sociedade -, conceitos, ideias, práticas reforça nosso papel político para uma sociedade mais justa e acolhedora da diversidade”.
Contudo, o termo inclusão, tal como está posto nas discussões atuais, torna-se preocupante uma vez que pode colocar pessoas LGBTQIAPN+ num lugar de oposição à cidade, não fazendo-as pertencentes à cidade, afastando as reais necessidades e verdadeiros potenciais, assim como encaixar a arquitetura inclusiva em um mero nicho de mercado, cuja participação envolve todas as partes da sociedade, como conclui Bosa:
“A responsabilidade de construir espaços inclusivos na cidade é de todos, alguns têm privilégios a mais e podem acessar estes espaços de decisão com maior facilidade. Penso que já temos condições de avançar nessas discussões sobre o que é inclusão na arquitetura, no urbanismo, nas políticas públicas e afins a despeito dos que acham que falar de inclusão é falar de ‘privilégios para minorias’”.
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