Projetar ruas com foco na vida faz do trânsito um ambiente mais seguro

A ação da arquitetura e urbanismo para a redução de mortes no trânsito pode ser crucial na medida da criação de espaços que priorizam a segurança e mobilidade acessível. Ao incorporar soluções de planejamento e desenho urbano, associados ao conceito de “ ruas completas”, é capaz de acomodar de maneira segura pedestres, ciclistas, transporte público e veículos motorizados. Com isso, para implementar tais soluções que reduzam de fato acidentes, é preciso integrar estratégias que compreendam a complexidade do trânsito, envolvendo pessoas e veículos, para criar ambientes que se tornem mais seguros e acessíveis para todos.

De acordo com o Relatório de Status Global sobre Segurança no Trânsito da Organização Mundial da Saúde (OMS), 1,35 milhão de pessoas perdem a vida em sinistros de trânsito todos os anos. Mortes no trânsito são encaradas como inevitáveis, como se fossem um preço a pagar pela mobilidade. Mas não deveria ser assim.

O arquiteto e urbanista pode ser um profissional de grande contribuição nas questões de mobilidade urbana, pois está habilitado para prover segurança e qualidade de vida no desenho das cidades e no sistema viário, assim como para a  capacitação de quem planeja e usa as vias.

A partir disso, com a criação de um sistema de mobilidade que seja seguro para todas as pessoas que transitam nas ruas, o arquiteto e urbanista contribui para que a exigência de padrões de segurança viária sejam estabelecidos e cumpridos, garantindo que os pedestres sejam contemplados em tal planejamento.

Para sobreviver aos deslocamentos diários pela cidade, os pedestres  lidam diariamente com a falta de calçadas apropriadas para caminhar nas ruas e avenidas, tendo que conviver próximos aos carros, motos e caminhões sem opções seguras e mais suscetíveis a acidentes. Uma das questões a serem consideradas dentro do contexto de segurança viária é o estímulo à mobilidade não motorizada. Investir em infraestrutura cicloviária e de transporte público, além da aplicação de piso tátil nas calçadas dos grandes centros urbanos são exemplos de soluções uma vez que a cidade pensada e feita para as pessoas não é mais cara do que as cidades pensadas para os automóveis.

Cerca de 5 mil pedestres perderam a vida no trânsito brasileiro, segundo levantamento feito pelo Datasus em 2022. A plataforma traz a informação de que na última década, morreram em média 18 pedestres todos os dias no Brasil. Ou seja, são 558 pessoas todos os meses.

O desenho das ruas e avenidas que compõem o sistema viário continua voltado para o atendimento das demandas do trânsito de veículos. O imperativo da velocidade acaba sendo dominante, tornando perigoso o deslocamento para quem caminha. Por isso a orientação da OMS e das organizações internacionais são taxativas na defesa da desaceleração das cidades, pela simples redução das velocidades. O conceito de “ruas completas” é uma proposta-conceito que pode ser explorada pelos arquitetos e urbanistas, visando o convencimento e adesão da população para as medidas necessárias à promoção da  segurança viária. Nesta proposta é realizado um piloto na qual a via escolhida é transformada mediante intervenções destinadas a torná-la uma rua que atenda as necessidades de todas as pessoas.

Dentro do conceito de urbanismo e mobilidade, trata-se de ter acesso confortável e conveniente aos seus destinos, seja caminhando, dirigindo, pedalando e principalmente utilizando o transporte coletivo.

O Sistema de Classificação Funcional de vias urbanas, instituído pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), define categorias de ruas conforme a importância relativa para a cidade em geral, baseado em características operacionais voltadas à mobilidade e capacidade de tráfego, entre outros aspectos. Ainda que as classificações funcionais sejam base para a maioria dos guias de projetos e manuais de vias de nível municipal a nacional, por muitas vezes são insuficientes para desenhar uma rua que seja completa.

Para Andréa dos Santos, presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), “hoje, os projetos urbanísticos e arquitetônicos, e também os planos urbanísticos devem ser voltados aos pedestres que, em sua maioria, movimentam as cidades. Não planejar e desenhar a cidade para com eles, é ignorar parte basilar da mobilidade urbana.”

“Sabe-se que o aumento de acidentes no trânsito se dá por mortes envolvendo principalmente pedestres. Ciclistas e motociclistas se somam a esta estatística. Isso mostra que ainda são insuficientes as ações derivadas das leis municipais de trânsito para redução dos limites de velocidade. O mesmo ocorre com relação às calçadas, construídas de forma aleatória, ocupadas  por equipamentos e outros obstáculos, que fazem delas uma pista de obstáculo para quem caminha, sejam jovens ou pessoas de idade mais avançada, que representam os segmentos mais numerosos e vulneráveis”, aponta Andréa.

Conforme Nazareno Stanislau Affonso, urbanista de Mobilidade e diretor nacional do Instituto do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade (Instituto MDT), “para que os pedestres ganhem cidadania no uso da cidade é fundamental que as prefeituras realizem pesquisas para identificar quais os principais corredores de circulação dos pedestres que deverão ter um tratamento qualificado com iluminação, acessibilidade para pessoas com deficiências e mobilidade reduzida, sinalização de prédios públicos e do tempo de viagem entre as várias áreas da cidade e sinalização de tempos de viagem a pé várias pontos na cidade. Nos pontos de ônibus deve ter espaço para bicicletas com iluminação e bicicletários”.

“A forma que nós [MDT] defendemos é a fiscalização, com multas, primeiro fazendo com que os carros respeitem as faixas de pedestres para esses darem cidadania aos pedestres. E em alguns casos também é levantando essas faixas em locais mais críticos”, acrescenta.

“Outro ponto com bastante eficácia é a redução da velocidade das vias. Mundialmente as cidades têm reduzido a velocidade para 50 km por hora na maior parte das vias e nas vias com maior movimentação de pedestres junto a escolas, prédios públicos e outras edificações, se reduzida a 30 quilômetros. Pensamos que dessa forma podemos dar cidadania ao pedestre na nossa cidade”, aponta o também artista plástico. 

Segundo Valeska Peres Pinto, arquiteta e urbanista, ex-presidente da FNA e coordenadora do Programa de Melhores Práticas de Mobilidade Urbana da União Internacional de Transporte Público (UITP) – Divisão América Latina, “se os arquitetos começarem a pensar que mobilidade é um problema, então poderão agir; isto ainda não ocorre na categoria, que ainda não abraçou o tema. Muitos arquitetos e urbanistas ainda consideram a mobilidade e o trânsito como questões de engenharia, “coisa de homem, não de mulher”. Porém no cotidiano a mobilidade também precisa do olhar das mulheres, o olhar relacionado ao cuidado das pessoas. A mobilidade é muito mais que um simples ir e vir; a mobilidade é o que dá vida às cidades”.

“É um campo que é muito grande, muito importante para a ação dos profissionais e que se dá num nível de intervenção mais próximo da realidade, numa escala pequena. Então, se a maioria das cidades tem ordenamento urbanístico e Plano Diretor, deve também ter algum ordenamento sobre essa questão. O problema é tirar as propostas do papel e fazê-las aplicadas”, afirma Valeska.

A arquiteta também menciona que, se quisermos reduzir realmente a letalidade do trânsito, temos que olhar para aqueles que são mais prejudicados. Ou seja, numa linha de pessoas vulneráveis, pedestres, ciclistas e motociclistas – em qualquer estatística de acidentalidade – são as maiores vítimas. Requerendo elas então, atenções distintas.

“A relação entre bicicleta e pedestre é outro problema. Hoje tem ciclista andando em calçada, motociclista andando em calçada, porque ele não tem espaço na pista, mesmo brigando com o pedestre. Então, nós temos que olhar esses conflitos e, de uma vez por todas, estabelecer aqui passa o ciclista, aqui passa o motociclista”, resume.

Desta maneira, os projetos arquitetônicos, o desenho urbano e planos urbanísticos podem colaborar para a redução de mortes no trânsito de modo que a educação e conscientização das comunidades locais se relacionam com uma mudança de consciência do indivíduo acerca do que é o local do trânsito. 

Logo, a educação de trânsito é algo que deve existir desde as escolas primárias. E junto com o reconhecimento da boa prática. Pois, no trânsito, todo mundo é parte, inclusive arquitetos e urbanistas, como conclui Valeska:

“Acima de tudo, é uma área que tem grandes desafios para os arquitetos urbanistas, que coloca realmente para a profissão uma grande oportunidade de agir sobre a cidade, para além de fazer Plano Diretor, que se sabe que muitas vezes é um papel que não se realiza. Então, é uma ação efetiva naquele que é o maior espaço da cidadania, que é o espaço público. Agora, numa sociedade que não dá valor ao espaço público, que vai toda para dentro dos espaços privados, que ao invés de ruas e lojas prefere shopping, você acaba abandonando as ruas, acaba abandonando esse esforço de tornar o espaço público um lugar de cidadania, um lugar de convívio.”

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

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