Karla Moroso de Azevedo é Arquiteta e Urbanista no AH! Arquitetura Humana e no Centro de Direitos Econômicos e Sociais – CDES, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O Rio Grande do Sul está enfrentando a sua maior tragédia climática registrada até o momento. Os números são alarmantes: mais de 2.400.000 pessoas afetadas, mais de 580 mil desalojados, 76.188 indivíduos em abrigos temporários e 463 cidades impactadas por eventos de enxurradas, inundações e movimentos de massa. Diante desses dados, é crucial refletir não apenas sobre a dimensão do desastre e medidas emergenciais, mas sobre o lugar do planejamento na prevenção e recuperação.
Na emergência da tragédia, surgem inúmeras ações para atender as famílias desabrigadas e propostas para a reconstrução pós-desastre. Alternativas que parecem vir descoladas de um planejamento, que agora, diante do caos, parece não ter espaço. Mas será que o planejamento já teve algum espaço? Onde ele estava antes dessa calamidade?
As ações emergenciais são vitais para lidar com as consequências imediatas, mas é essencial reconhecer que a prevenção é tão importante quanto a resposta. É aqui que o planejamento desempenha um papel fundamental. No entanto, parece que a discussão sobre o planejamento para desastres e necessidades habitacionais ficou em segundo plano até que a tragédia se abatesse sobre nós, contabilizando desabrigados e propondo reconstruir cidades, sem um plano.
Os planos para enfrentar desastres e atender às necessidades habitacionais devem ser parte integrante das políticas públicas. No entanto, muitas vezes, esses planos são negligenciados ou implementados de forma insuficiente. É hora de questionarmos por que o planejamento preventivo não recebe a atenção merecida até que a crise esteja diante de nossos olhos.
Em 2012, o Rio Grande do Sul concluiu um marco importante em sua agenda de habitação social com a finalização do seu Plano Estadual de Habitação de Interesse Social. Este plano, elaborado com base na Lei Estadual Nº 13.017 de 24 de julho de 2008, estabeleceu o Sistema Estadual de Habitação de Interesse Social (SEHIS), o Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social (FEHIS) e o Conselho Gestor do Fundo. Identificou-se na época um déficit habitacional de 193.576 unidades habitacionais, além de propor um conjunto de programas e ações para enfrentar as necessidades habitacionais do Estado. Hoje o déficit habitacional do Estado é de 258.275 unidades habitacionais, considerando habitações precárias, coabitação e ônus excessivo em aluguel e sem contabilizar as demandas decorrentes dos recentes eventos extremos ocorridos no Estado.
Em 2012, o contexto nacional também estava em ebulição com relação à proteção de riscos e desastres, especialmente após os eventos trágicos ocorridos no Rio de Janeiro em 2011, quando em resposta, o Brasil promulgou a Medida Provisória 547, que deu origem à Lei Federal 12.608 de 10 de abril de 2012, instituindo a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e o Plano Nacional de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres.
Essa legislação, entre outras disposições, reconheceu o planejamento urbano como uma estratégia essencial para lidar com desastres, propondo novas exigências e regras para o desenvolvimento do território. Especificamente, foram estabelecidas medidas como a realização de mapas de risco, planos de contingência e a utilização de cartas geotécnicas para aprovações de novos loteamentos. Além disso, houve a exigência de normas específicas para loteamentos em áreas de maior vulnerabilidade e a elaboração de planos de expansão urbana que considerassem áreas de risco, proteção ambiental e cultural, e diretrizes para infraestrutura e habitação social.
O Plano Nacional de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres foi formulado com o objetivo de promover ações que garantissem a proteção da vida humana e do meio ambiente. Essas ações foram organizadas em quatro eixos temáticos, abrangendo desde obras de prevenção até o monitoramento e alerta de eventos extremos, bem como o fortalecimento da capacidade de resposta aos desastres.
É importante retomar que, desde 2011, o Ministério de Minas e Energia, por meio do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), desenvolve atividades de mapeamento em municípios prioritários para a prevenção de desastres. A partir de 2012, com a Lei Federal 12.608/2012, os municípios cadastrados com áreas suscetíveis à ocorrências de deslizamentos, inundações ou outros processos geológicos ou hidrológicos correlatos, ficaram obrigados a manter o cadastro da população nas áreas identificadas, elaborar Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil e instituir órgãos municipais de Defesa Civil, de acordo com os procedimentos estabelecidos pelo órgão central do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, elaborar plano de implantação de obras e serviços para a redução de riscos de desastre, criar mecanismos de controle e fiscalização para evitar a edificação em áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, elaborar carta geotécnica de aptidão à urbanização, estabelecendo diretrizes urbanísticas voltadas para a segurança dos novos parcelamentos do solo e para o aproveitamento de agregados para a construção civil, estabelecendo nestes dois últimos pontos uma conexão importante com os planos diretores. Esse projeto mapeamento de riscos de desastres, coordenado pelo Ministério da Integração Nacional em parceria com o CPRM, focou em levantar dados de vulnerabilidade, elaborar mapas de risco e desenvolver uma metodologia nacional para mapeamento de vulnerabilidade e risco.
A partir deste projeto a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por meio do Grupo de Gestão de Riscos e Desatares (GRID) do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (CEPED/RS) desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento de metodologias para mapeamento e classificação de vulnerabilidade a partir dos oito municípios do Estado que foram comtemplados no projeto do Ministério da Integração Nacional: Sapucaia do Sul, Novo Hamburgo, São Lourenço do Sul, Capão do Leão, Encantado, Estrela, Rolante e Igrejinha. Todos com indicativos de inundação na época e atingidos pelos eventos extremos ocorridos em maio de 2024.
Em 2016, o CEPED/RS lançou o Projeto Taquari-Antas, uma iniciativa destinada a apoiar a implementação de uma estratégia abrangente de prevenção de riscos na bacia do Taquari-Antas. Este projeto ambicioso tinha como metas integrar dados, analisar padrões de eventos, estudar cenários, definir ações prioritárias, tanto estruturais quanto não estruturais, e propor três termos de referência. Com um investimento total de 2.287.225,50, o projeto representou um passo significativo na busca por soluções eficazes para a mitigação dos riscos associados aos regimes hidrológicos numa perspectiva regional, olhando para a bacia hidrográfica.
Nesta perspectiva regional, cabe destacar o Plano de Proteção Contra Cheias para os municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre – RMPA, apresentado em 2018 pela Metropolan – Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional, órgão responsável pela elaboração e coordenação de planos, programas e projetos para a RMPA mas que teve a sua extinção pavimentada pela Lei Estadual n.º 14.982 de 16 de janeiro de 2017 que autorizou a extinção de fundações de direito privado da Administração Púbica Indireta do Estado do Rio Grande do Sul. Hoje, o impacto da tragédia que tem 67% das população atingida na RMPA, reflete tanto o planejamento abandonado como carece de um olhar metropolitano para as soluções que pipocam diante dos desastres anunciados e da necessidade de respostas rápidas em meio a múltiplas iniciativas concomitantes, sobreposição de ações e competências concorrentes que optam pela gestão do caos.
A articulação entre planejamento e gestão não é apenas desejável, mas necessária para enfrentar os desafios complexos apresentados pelos desastres. Somente através de uma abordagem integrada e coordenada, que combine planejamento estratégico com ação prática, podemos verdadeiramente reduzir os riscos e proteger as comunidades.
Sem dúvidas o planejamento desempenha um papel fundamental na estruturação de um território, oferecendo a oportunidade de antecipar e evitar problemas futuros. Ele só pode ser eficaz quando acompanhado por uma gestão eficiente, capaz de administrar os recursos disponíveis e responder às necessidades imediatas. O planejamento, prepara o terreno para a gestão futura, que é responsável por colocar em prática as condições por ele estabelecidas. Mas onde estava todo o planejamento pontuado aqui antes dessa calamidade? Talvez dentro de uma gaveta, levada pela inundação.