Mais vivos do que se imagina

“Mais vivos do que se imagina”. É assim que a arquiteta e urbanista e guardiã da Comunidade Cajuúna Carla Bethânia Ferreira da Silva, 53 anos, descreve seu povo da Reserva Extrativista (Resex)* Marinha de Soure, no Marajó (PA). Desde a época da colonização brasileira, os nativos enfrentam inúmeras dificuldades no reconhecimento pelo Estado, que hoje, apesar da luta da comunidade, afirma não existir mais povos indígenas na região. Dividindo o território da ilha com fazendeiros e quilombolas, 76 famílias Cajuúnas tiram seu sustento exclusivamente da caça e da pesca dentro da Resex.

A resistência para encontrar espaço, inclusive, é algo que Carla vê desde pequena. “Meu pai trabalhava em Belém, então estudei em escola militar minha vida inteira. Lá, me chamavam de sagui, de menina selvagem. Acabei tendo uma infância e adolescência solitária, com dificuldades de encontrar o meu espaço. O português também era minha pior matéria. Desde criança, eu me comunicava mesmo é pelos desenhos”, conta. Carla é a do meio de um total de três irmãos. Filha de um pai negro, que foi retirado de um quilombo em São Francisco (MG) e educado para ser militar em um orfanato jesuíta, e de uma mãe prometida para um dono de fazenda. Ela conta que durante uma missão no território Cajuúna, eles se conheceram, se apaixonaram e fugiram juntos para construir sua família.

O contato com a arquitetura e o urbanismo veio em 1992, quando se mudou com a família para Lima, no Peru. O anseio inicial era fazer moda na graduação e poder colocar em prática toda essa ligação com o mundo das artes e com suas ancestralidades. “Acabei indo cursar arquitetura na Universidad Ricardo Palma, porque não tinha o curso que eu queria. Lá, me aproximei dos incas e comecei a ter uma outra visão sobre a conexão das pessoas com as suas origens”, relembra. Após quatro semestres, Carla voltou a Belém (PA) e deu seguimento a sua formação na Universidade Federal do Pará (UFPA).

O ambiente acadêmico brasileiro foi um dos períodos de maior dificuldade da profissional, que se sentia um “bichinho estranho”. “Lembro direitinho que no primeiro dia de aula, minha turma se sentou de um lado e eu, sozinha, de outro. Pensei em desistir várias vezes, mas essa relação que eu tinha com os desenhos foi o que me segurou durante os cinco anos de curso”. Os percalços na trajetória foram vários, desde a dificuldade no acesso ao computador e à internet, até o desestimulo dos professores e da aplicação da arquitetura na sua realidade. “Tive um professor que dizia que eu nunca seria arquiteta. Falavam que o índio tinha que ficar lá, fora do ambiente acadêmico. Mas eu não ia fazer isso, sempre respondia ‘índio lá e índio aqui’”.

A ideia para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) já vinha desde os anos no Peru. Carla queria desenvolver um mobiliário com inspiração indígena, como uma forma de registrar e manter a cultura dos povos ativa. Depois de um estágio na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ela decidiu desenvolver o projeto dos móveis contando um pouco da história do povo Caiapó. “Precisei criar todo o material à mão e digitalizar aos poucos. Passei boa parte do processo sem orientador e com muita dificuldade de encontrar bibliografia na área. Tudo que tínhamos de conteúdo era sob uma influência europeia, mas eu queria mostrar a cara do meu povo, da minha comunidade. Mostrar esse pedaço da história do Brasil”, conta. Apesar das dificuldades, foi aprovada com excelência e, nos anos seguintes, atuou como arquiteta e urbanista na Secretaria da Educação do Pará (Seduc) e na Secretaria Municipal de Educação de Belém (Semed).

Atualmente, a profissional já não atua mais na área, mas ainda reflete sobre o processo de graduação e de produção da arquitetura. Carla explica que boa parte do que se aprende na faculdade não é aplicável na perspectiva dos indígenas. “Um arquiteto branco vai olhar para a nossa floresta e pensar em derrubar tudo para construir. Eu, enquanto arquiteta nativa, vou pensar em como manter essa floresta em pé e dar a minha comunidade conforto e o seu sustento. Nosso povo já é um exímio arquiteto, com uma produção impecável da palafita e um conhecimento profundo do território”, afirma. Ela questiona como aplicar essa forma de produção para um povo que não vê o urbanismo da mesma forma.

Quem também é guardião dos Cajuúnas e questiona essas relações territoriais é Neivaldo Nascimento Monteiro, primo de Carla. Pedagogo e técnico agropecuário, ele afirma que o Estado, a academia e as políticas públicas têm muita dificuldade em criar projetos através do olhar dos nativos. “Só queremos ter nosso espaço e ser quem somos. Queremos compartilhar como vemos as coisas, mostrar a nossa relação com o nosso território. O poder público, entretanto, trabalha na lógica inversa. Não querem saber o que o indígena vê, mas tentam projetar o que eles querem ver na gente”.

Ambos questionam, e Carla reforça afirmando que “não quer trazer conflitos, mas sim reflexões”, que é preciso entender as capacidades dos nativos sem a régua da colonização europeia. Ela destaca que as comunidades procuram criar construções integradas com a natureza, espaços pertencentes e respeitam o poder da floresta sobre os povos. “Faz apenas cinco anos que temos água potável na Resex, sendo que estamos localizados ao lado de uma floresta que recebe turistas há décadas. É lógico que queremos o crescimento da região e ter acesso à infraestrutura, mas é necessário que se respeite a nossa coletividade, as leis de dentro da comunidade, a nossa educação respeitosa, integrativa e a cultura do nosso território”. Eles apontam que as políticas públicas precisam compreender esse contexto para gerar o crescimento.

Neilvado também indaga a dificuldade do Estado em reconhecer a existência do povo indígena na região do Marajó. Ele explica que é possível desenvolver um turismo ambiental e explorar o território sem afetar a floresta e o sustento de tantas famílias. A luta dos Cajuúnas segue e a necessidade de voz e de espaço também. O que os guardiões mais defendem é a necessidade de compreender os nativos além da demarcação de território, que devia ser a linha base das políticas públicas de preservação. A história indígena vem também de entender a relação do povo com a natureza, com a caça e a pesca responsável, de entender que é da floresta que se tira a saúde e a moradia. A lógica colonizadora segue, mesmo tantos anos após a invasão portuguesa às terras brasileiras. “Eu faço meus brincos, ando por aí com a minha pintura e com meus traços, porque quero que me vejam como eu sou. Estamos mais vivos do que se imagina, temos coragem e estamos aqui falando sobre quem somos”, finaliza Carla.

*Resex são espaços territoriais protegidos para a manutenção da cultura e os meios de vida dos povos nativos. Reconhecidas, têm como objetivo assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da área. A Resex Marinha de Soure foi uma das primeiras no Brasil.

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