Existe espaço para a transexualidade na arquitetura e no urbanismo?

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. O relatório de 2021 registrou 140 assassinatos, sendo 135 deles de mulheres trans. Por isso, aos 22 anos, quando Anne Ranyelle Gonçalves decidiu fazer a transição de gênero, o medo e os desafios eram algo que ela via em seu caminho. “Eu me preparei muito para o preconceito que ia sofrer”, conta. A transfobia é, hoje, uma das grandes urgências em relação às políticas públicas de proteção e inclusão da comunidade LGBTQIA+. “Honestamente, eu acredito que as cidades não são seguras para ninguém, principalmente para alguém como eu”, expõe. Essa necessidade de fazer diferente e pensar o urbanismo de forma mais plural foi o que levou Anne, natural de Caeté (MG), a se mudar para Belo Horizonte (MG) e ingressar no curso de Arquitetura e Urbanismo na Faculdade Pitágoras, em 2014.

O processo de transição de gênero é um período de diversas mudanças físicas, emocionais e sociais, e a mineira viveu todas elas dentro da faculdade. Por isso, tornou-se impossível falar da sua formação profissional sem falar da sua transexualidade. Ela explica que, apesar de não ter sofrido com o preconceito de forma escancarada, era notório a transfobia velada com a que teve que lidar e, infelizmente, ainda lida. “Eu não era impedida de entrar no banheiro feminino, por exemplo. No entanto, precisei lutar muito para ter o meu nome social incluído na lista de chamada, e isso só foi respeitado quando consegui a alteração oficial no registro civil”, relembra. A troca do nome é um direito garantido às pessoas transexuais desde 2018 e podem ser feitas sem a necessidade de uma ação judicial, basta ir a um cartório e fazer o pedido. Mesmo sem a ratificação nos documentos oficiais, a dificuldade em incluir o nome social no dia a dia é um ato transfóbico por parte das instituições. 

Os olhares e comentários também seguiram fazendo parte da rotina acadêmica de Anne. “Todas essas mudanças são bastante intensas, tanto física quanto emocionalmente”, aponta. Além de passar por todo processo interno, pessoas trans ainda precisam lidar com a curiosidade e questionamentos de quem está ao seu redor. E com a arquiteta e urbanista não foi diferente. Ela conta que a transição foi um período de muita aceitação pessoal. “Eu precisei me posicionar, entender e explicar muitas coisas aos meus amigos e professores”, afirma. 

Quando saiu da faculdade, no final de 2019, a recém formada ainda precisou encarar mais um desafio: a dificuldade em entrar no mercado de trabalho. “Acho que para todas as mulheres é muito difícil estar no meio da construção civil por ser um local dominado por homens, mas, com certeza, as pessoas trans sofrem ainda mais preconceito”, diz. Ela relata já ter passado por situações em que, por exemplo, seu chefe achou melhor evitar a visitação em obras de clientes muito machistas. 

Ao longo da graduação, no entanto, a mineira conseguiu algumas experiências positivas dentro da área. A primeira, foi como voluntária em projetos sociais de reconstrução e reforma de patrimônios públicos nos bairros periféricos de Belo Horizonte, e a segunda, na Prefeitura de Caeté, onde trabalhou com o programa Minha Casa Minha Vida e Habite-se. “Esse trabalho com o público me surpreendeu positivamente, porque pude estar ao lado de pessoas que necessitam do trabalho de um arquiteto e pude, também, abrir espaço na acessibilidade das pessoas trans dentro das comunidades”, relata. Segundo a arquiteta, essa aproximação é uma maneira de normalizar a presença de profissionais LGBTQIA+ em diferentes espaços.

“Arquiteto é coisa de rico”. Essa foi a frase que Anne mais ouviu durante o seu tempo atuando entre a população mais carente. Segundo a profissional, a  popularização da arquitetura é algo ainda muito difícil. “Eles reconhecem o valor de um projeto, mas não entendem como esse investimento pode ajudá-los”, afirma. Ela conta que dentro da Prefeitura, por estar relacionada à pauta da Assistência Social, a população que buscava atendimento não estava atrás de soluções arquitetônicas, mas sim burocráticas em relação às construções. Ou seja: o trabalho era mais social do que projetual. Entretanto, a mineira afirma que o projeto Minha Casa Minha Vida é um divisor de águas para as comunidades e algo que precisamos retomar. “A dignidade de moradia e a dignidade de existir são duas urgências para o país”.

Atualmente com 27 anos, Anne já não trabalha mais na profissão em que se formou. “Continuei estudando e tentando entrar na área de arquitetura, mas é muito difícil”, confessa. Ela explica que, além das questões de gênero e sexualidade, o mercado de trabalho é muito concorrido em Belo Horizonte. Devido à dificuldade em atuar, decidiu se debruçar em outra área: o Marketing Digital. “Eu percebi que era uma carreira em ascensão, decidi fazer um MBA e me arriscar em outro tipo de atuação”, conta. A tentativa deu certo e hoje ela estuda Publicidade e Propaganda – também na Faculdade Pitágoras. Dessa vez, entretanto, Anne consegue encontrar o seu nome na chamada. 

A futura publicitária afirma ainda que a comunicação está  muito mais preparada para receber pessoas LGBTQIA+. “Vejo muitas oportunidades de emprego e vagas destinadas a pessoas trans na comunicação do que jamais vi na arquitetura”, aponta. Uma realidade muito parecida com a apresentada pelo primeiro perfil da série “Cidades para Todes”, Clevio Rabelo, que apontou o pouco espaço que a comunidade tem em áreas mais voltadas à construção de grandes projetos. A pergunta que fica, então, é: quantos quilômetros ainda vamos ter que caminhar para tornar a arquitetura e o urbanismo um espaço de todes? 

Gostou desse texto? Siga acompanhando nossa série:

Agenda:

07/06 – Clevio Rabelo

21/06 – Gabriel Pedrotti

Rolar para cima