Como incorporar domicílios vagos às políticas habitacionais?

O crescimento da população, o esvaziamento dos centros urbanos e a lógica das cidades atravessadas pela gentrificação indicam um desencontro entre déficit habitacional e vacância, que resultam no aumento de domicílios vagos em todo o Brasil. Com isso, é preciso compreender o impacto das políticas públicas voltadas ao tema e como os profissionais de arquitetura e urbanismo podem auxiliar na identificação desses imóveis para uma utilização adequada à sua totalidade.

De acordo com o Censo Demográfico feito em 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 11,4 milhões de casas e apartamentos vazios no país. Tal aumento está relacionado ao crescimento dos domicílios vagos e de uso ocasional (como por exemplo, casas de veraneio e segundas residências). Quando considerados os domicílios particulares permanentes não ocupados, em que há a soma dos dois tipos, o aumento foi de 80%, chegando a 18 milhões em 2022. Os domicílios particulares vagos aumentaram 87%, chegando a 11,4 milhões, enquanto os de uso ocasional cresceram 70% em 12 anos (de 2010 a 2022), totalizando 6,7 milhões.

Os domicílios de uso ocasional são aqueles de utilização particular permanente que servem ocasionalmente de moradia. Ou seja, são aqueles usados para descanso de fins de semana, férias ou outros fins. Já os domicílios vagos são residências particulares permanentes sem moradores, mesmo que, posteriormente, estivessem ocupados.

Uma das informações que mais chamou a atenção no novo levantamento do IBGE foi o crescimento populacional abaixo do esperado. Os cálculos estimavam que os habitantes do país chegariam a 207 milhões. A pesquisa constatou, no entanto, um total de 203 milhões. Entre 2010 a 2022, a população no país cresceu 6,5%, o que resulta em um número de 12,3 milhões de pessoas, ou seja, a cidade de São Paulo de habitantes a mais. No mesmo período, o número de domicílios aumentou 34%, chegando a 90 milhões. Já os domicílios vazios, representam 87%, saltando de 6,1 milhões para 11,4 milhões.

Tal tendência também pode ser explicada pelo movimento migratório das pessoas dos grandes centros urbanos para municípios menores, dado o aumento no preço da habitação e pelas mudanças na estrutura familiar, assim como muitas pessoas estão voltando a morar nas residências onde cresceram.

O retrato atual da disparidade do acesso à moradia no Brasil carece da unidade de ação dos movimentos populares com os gestores públicos, tendo em vista que muitos desses imóveis vazios poderiam ser desapropriados e destinados para as famílias que moram em domicílios precários, que tem a renda comprometida com aluguel ou que estejam em situação de rua. Logo, a quantidade de domicílios vazios, associada às necessidades habitacionais do país, reforça o papel central dos arquitetos e urbanistas no enfrentamento destas disparidades, a necessidade de parcerias e o diálogo interfederativo, junto às autoridades nos poderes legislativo, executivo e judiciário.

Ainda que possam ser solução para o crescente déficit habitacional, parte desses domicílios vagos apresentam questões de ordem física, territorial e jurídica que precisam ser avaliadas. E a sua utilização dialogada com a sociedade.

Entretanto, para reabilitar espaço sem uso, é imprescindível o cumprimento da função social da propriedade de acordo com o artigo 39 do Estatuto da Cidade, onde “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (municipal), assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”.

De acordo com o geógrafo graduado pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Solismar Fraga Martins, para frear o aumento de domicílios vagos, pois “se trata de condição em que não há causa única, com mudança entre os municípios”. Utilizando o exemplo da cidade de Rio Grande (RS), o doutorado em Geografia com ênfase em Geografia Urbana, Planejamento Urbano e Geografia Regional explica que “existe um processo de descentralização do centro do ponto de vista residencial e até mesmo em alguma escala comercial que vem ocorrendo, principalmente, pós pandemia”.

Os mecanismos presentes no Estatuto da Cidade são ainda os mais viáveis, dada a especulação imobiliária (é importante destacar que mercado imobiliário não é um sinônimo de produção capitalista de imóveis ou tampouco, de especulação). Muitos destes imóveis seguem pagando imposto predial e não territorial, pois há frágil fiscalização por parte da municipalidade, bem como carência de legislação que possibilite a realocação de pessoas em situação de rua ou despejo, como complementa Martins:

“A legislação vigente impede a realocação de pessoas em tal situação pois trata-se de propriedades particulares no qual o gestor público poderia agir através de processo de desapropriação. Quando estas estão em áreas valorizadas, é pouco provável que ocorra.”

A presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Andréa dos Santos, vê na questão dos domicílios vagos um retrocesso nas políticas públicas habitacionais: “Há um visível crescimento de pessoas sem moradia em paralelo aos domicílios vagos no Brasil. Ter um lugar para morar é a porta de entrada de muitos acessos pertinentes à cidadania. Logo, sem o cerne do que torna alguém cidadão, há o apagamento gradual dessas pessoas”.

“Nosso papel enquanto entidade sindical é encontrar métodos e maneiras de identificar esses imóveis. Por meio da colaboração com universidades e instituições, podemos saber o que é imóvel de temporada de uma família e diferenciá-lo de uma edificação que esteja vazia por ser propriedade pública sem destinação. O que devemos fazer é debater meios de incorporar essa situação nas políticas públicas para habitações adequadas”, acrescenta a presidente.

Andréa adiciona que “mesmo com o movimento de migração dos grandes centros urbanos para os municípios menores, os espaços de moradia digna seguem reduzidos pela infraestrutura de muitos desses prédios e casas”.

Seis entre os 10 municípios com maior percentual de domicílios de uso ocasional ficam no Rio Grande do Sul, conforme dados apresentados do Censo IBGE 2022. No estado gaúcho, onde é comum que famílias tenham segundas residências no litoral, 8,6% das residências são usadas ocasionalmente, representando um total de 458.282 domicílios.

Para Martins, o reaproveitamento desses espaços para o reforço de programas habitacionais, mas também para a expansão dos espaços: “O maior obstáculo no Brasil refere-se a lei de propriedade privada, embora tenhamos a lei de usucapião, esta somente pode ser solicitada após 15 anos de ocupação. Nos terrenos localizados em áreas valorizadas, isso dificilmente ocorre; sendo o caminho contrário das áreas públicas. Em Rio Grande, há uma grande quantidade de imóveis vazios na área central, não muito atrativos para novas construções, dado o uso sazonal dessas residências [principalmente no verão], o que dificulta seu uso para tais fins.” Ou seja, nem todas as residências vazias significam que não haja uso permanente, como conclui o geógrafo:

“Atualmente, há a saída de parte da população de classe média de bairros do centro e a cidade nova em direção ao Cassino, onde os imóveis detêm valor bem maior de venda e o tipo de ociosidade encontrada é outra, já que é alta a procura por segundas residências e casas de veraneio, modalidades mais comuns no litoral.”

Karla Moroso, arquiteta e urbanista no Centro de Direitos Econômicos e Sociais – CDES e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ressalta que “temos que ter  cuidado quando falamos dos imóveis vazios e sua utilização. Precisamos ter ações públicas que olhem para esses imóveis, de modo programático, identificando suas características, classificando-os segundo os perfis das demandas por moradia e direcionados para a política habitacional estruturando um banco de imóveis”.

“Em uma primeira leitura, separar os imóveis públicos dos privados, pois direcioná-los para a política habitacional vai exigir estratégias e instrumentos diferentes, na sequência, identificar quais são as questões que estão implicadas neles: se são imóveis retomados por autarquias federais e pelas instituições financeiras”, acrescenta a arquiteta.

Karla conclui que “abordar o tema dos imóveis vazios associado ao atendimento das necessidades habitacionais requer método.  Também precisa definir quem é quem, segundo seus papeis sociais e institucionais”.

Foto: Guilherme Pinto

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