Buscando traços na poesia

Criada em meio aos projetos arquitetônicos do pai, o arquiteto Gilberto Guizzo, de Caxias do Sul (RS), Iazana Guizzo, de 35 anos, tomou o mesmo rumo para si. Buscou a Arquitetura para a vida. No meio do caminho, no entanto, percebeu que poderia promover a transformação do olhar para o ofício que desempenha. Buscou a mudança em si e nos outros. Tudo isso para resgatar da Arquitetura a poesia que poucos conseguem ver.

Nascida em Farroupilha (RS), Iazana concluiu a graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UniRitter, em Porto Alegre (RS), em 2004. Depois disso, em 2008, fez mestrado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ). Mais tarde, em 2011, optou por Bailarino Técnico Contemporâneo pela Angel Vianna, no Rio de Janeiro (RJ). Já no período de 2012 e 2013, fez doutorado Sanduíche no Institut d’Urbanisme (IUP), em Paris. Em 2014, dedicou-se ao doutorado em Urbanismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os títulos, no entanto, eram apenas o início para uma caminhada que deveria abrir novas fronteiras para Iazana e os que cruzassem o seu caminho.

O conhecimento adquirido pela jovem marcou o início da sua aventura. A arquiteta desbravou a academia. Foi professora substituta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, nos anos de 2009 e 2010, sendo que, na mesma instituição, foi tutora, em 2012. Atualmente, é coordenadora e professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, onde também atua como professora do mestrado profissional Gestão do Trabalho para a Qualidade do Ambiente Construído.

Durante a carreira, Iazana atuou em urbanismo em Nova Iguaçu, São João de Meriti e Nilópolis. Na arquitetura, teve experiência em diversos escritórios, até criar o Terceira Margem – Arquitetura e Singularidades, coletivo que trabalha com uma metodologia própria e participativa na concepção de projetos de arquitetura e urbanismo. A metodologia também é ligada ao corpo e se utiliza de diversos dispositivos das artes como exercícios do teatro, artistas plásticos como Lygia Clark e Hélio Oiticica, cinema, literatura, entre outros.

O Terceira Margem começa com um projeto com oficinas corporais, entre outros dispositivos, que auxiliam o cliente a construir a demanda do projeto. “Entendemos que há uma passagem muito importante que deve ser feita antes do primeiro traço, que é a passagem do pedido para a demanda de projeto. O cliente chega com um pedido, com um problema, um desejo difuso ou uma ideia vaga, mas desconhece a sua demanda real”, comenta.

Iazana conta que sempre entendeu a arquitetura como uma possibilidade de potencializar a vida das pessoas. “O ambiente construído nunca é neutro, ele pode ampliar nossa potência de agir no mundo ou pode contribuir para decompor o que temos de mais singular e valioso. Nesse sentido, entendo que a arquitetura é potente quando está a serviço da expressão de um modo de ser e de viver, de uma cultura, de um povo. Quando ela faz parte de um território existencial. Exatamente o oposto da reprodução de modelos hegemônicos, que muitas vezes as pessoas denominam, também, de arquitetura”, afirma.

Durante o seu percurso, na Universidade Santa Úrsula, uma de suas atividades chamou a atenção. Iazana inseriu a disciplina de Expressão Corporal no curso de Arquitetura e Urbanismo da instituição. “A poética é essencial à arquitetura, qualquer uma delas. A expressão corporal, nesse caso, junto a uma série de outras ferramentas, é um meio de liberar os corpos do automatismo e do individualismo, muito presentes hoje”, explica. “É um modo de acionar a poética, a utopia ou a vida pulsante nos estudantes. Ou ainda, é a afirmação de um certo modo de ser arquiteto que visa escapar à reprodução dos modelos”.

Segundo a arquiteta, é necessário trilhar um percurso pela poética a partir do território. “Não há como um arquiteto desenhar a partir do território (material e imaterial), sem que ele se quer possa encontrar realmente esse território. Mas o que seria encontrar, se não ter um corpo capaz de afetar e de ser afetado? Ao apresentar essa questão, deixo clara a influência de Spinoza, Deleuze, Guattari e Foucault nesse pensamento e nessa prática, na qual conhecer não é a reprodução ou descoberta da verdade científica ou artística (de algum modelo), mas o encontro entre corpos, capaz de criar um terceiro corpo (a criação)”, observa.

Foto: Natalia Cidade

Para descondicionar o olhar do outro, acostumado com o que apenas os olhos conseguem ver, Iazana questiona a como é possível afirmar a arquitetura como arte, como cultura, se as universidades formam, cada vez mais, arquitetos burocratas. “A disciplina de A1: Expressão do novo currículo do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Santa Úrsula visa o estudo, com inspiração em Darcy Ribeiro, das principais matrizes formadoras da cultura brasileira, usando como método exercícios corporais, vídeos e textos de antropologia. A aposta aqui recai no aprender com a experiência e não no passar informações. Já não aguentamos mais essa avalanche de informações, vindas de todos os lados na vida contemporânea. Compreender pelos afetos é muito diferente de ser informado, porque ao sermos afetados imediatamente nos misturamos ao que se aprende, entendemos a questão por dentro, sem sofrer com isso”, esclarece.

Foto: Luisa Bogossian

“Essa aula não é uma simples aula de expressão corporal, mas é um modo de aprender e valorizar a nossa própria cultura e fazer dela emergir, quiçá um dia, uma arquitetura. Entretanto, mesmo se isso não acontecer, é surpreendente a potência que essa aula tem de quebrar preconceitos e de reposicionar o arquiteto no território: não mais de cima para baixo, mas ao lado do mesmo. Uma arquitetura que não é mais para o outro, mas com o outro, aí está um novo paradigma da arquitetura e do urbanismo, normalmente chamado de participação, co-criação, co-design”, afirma, ressaltando que faz referência também a composição arquitetônica e urbanística com modos de viver, contra hegemônicos, que precisam ser valorizados e recriados.

A aula usa uma série de exercícios e técnicas advindas da dança, teatro e artes plásticas, bem como estuda a habitação indígena, conecta a arquitetura de Lina Bo Bardi às matrizes africanas e indígenas, e fala de Álvaro Siza a partir da cultura portuguesa. “É importante dizer que dentre as inúmeras poéticas possíveis, aposto no corpo. Primeiro, evidentemente, porque construí o meu caminho também pela dança. E, depois, porque no Brasil somos muito corporais. Tem relação com nossas heranças indígenas e africanas, nas quais politicamente desejo afirmar”.

A iniciativa passa pela recriação de todo o currículo de Arquitetura da Universidade Santa Úrsula, que vive um período de renovação, mantendo a tradição em um viés artístico e urbanístico forte. “O conceito do novo currículo é Construir na Diferença e visa preparar arquitetos capazes de construir de diversas maneiras em um território extremamente múltiplo, como é o caso do Brasil”, lembra.

A sua atuação, conforme conta a arquiteta, já rendeu transformações. “Há um duplo ganho de cara: a liberação de si mesmo ou a possibilidade de ser e de se transformar, e o entendimento da força expressiva da cultura brasileira normalmente marginalizada, o que faz da aula um meio de combate direto ao preconceito e ao individualismo”, salienta.

Foto: Igor Vidor

“Os estudantes percebem que em um território existem muitas coisas imateriais e que podem ter culturas e formas de habitar que ele desconhece. E mais do que isso, que ele pode aprender com elas. Isto é, já no primeiro período, entendem que o arquiteto e o urbanista não tem a verdade ou a solução correta a priori do encontro com o problema e o terreno de projeto. Ele precisa antes compreender, misturar-se ao território, e com a desestabilização que esse território provoca em sua própria arquitetura, projetar”, salienta. “Há aí uma outra atitude do arquiteto que estamos construindo não apenas com essa aula, mas com o curso todo, não mais top down, mas transversal ao território, de quem se coloca ao lado sem eliminar as diferenças”.

A mudança pela qual Iazana não deve deixar de lutar é pelo perfil de um arquiteto mais atento ao território. “Que projete para diferentes culturas e que as tenha como algo extremamente valioso”. Nessa perspectiva, segundo ela, cada intervenção no espaço proposta somaria ao existente no sentido de potencializar a vida de quem ali habita e não a favor de um conservadorismo.

Para o futuro, o desejo não é muito diferente. Se faz pulsante pela valorização da poética como força da arquitetura. “Que novos modos, práticas e atitudes de projetar sejam criados a partir do território, e que estes tragam consigo um modo feminino de se apropriar do construir. Sem com isso excluir os homens, quando evoco o feminino penso em criar outras possibilidades de ser arquiteto e imprimir um modo mais holístico e horizontal de desenhar e construir”.

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