Brasília: a popularização da política na terra das contradições

Símbolo da arquitetura moderna brasileira, Brasília (DF) comemora, nesta terça-feira (21/4), seis décadas de sua inauguração carregando as contradições de uma cidade planejada para ser o centro do poder – uma “civitas”, e não uma “urbs” – mas que hoje é uma metrópole de quase três milhões de habitantes. Em meio à pandemia de coronavírus, acentuam-se na cidade as contradições entre um Plano Piloto com áreas verdes, vias largas e complexos residenciais organizados e cidades satélites desiguais, cujas características vão desde a alta densidade populacional de classe média até a extrema pobreza e altas taxas de violência.

Inaugurada em 21 de abril de 1960 pelo então presidente Juscelino Kubitschek, a Capital Federal foi idealizada para simbolizar um novo Brasil que rumava para o desenvolvimento. Para dar vida a esse sonho à custa de muitos recursos e esforços, o país recorreu ao talento privilegiado dos arquitetos e urbanistas Oscar Niemeyer e Lucio Costa. O projeto urbanístico do Plano Piloto representava a simplicidade, elegância e beleza típicas do pensamento moderno, conforme expressa o próprio projeto de Lucio Costa inscrito em concurso coordenado por Oscar Niemeyer em 1956. Costa venceu desenhando Brasília no formato de um avião – ou borboleta, no seu dizer –, com um Eixo Monumental (onde está a Esplanada dos Ministérios) e as asas para servirem de moradia e oferecerem serviços à população.

Do modernismo internacional, a proposta herdou a setorização monofuncional, com áreas específicas designadas para a operação de determinadas atividades, como os setores Hoteleiro, de Indústrias Gráficas ou o Setor Comercial. Coube a Niemeyer coordenar a elaboração das edificações e monumentos em um sincronismo que concedeu à capital brasileira reconhecimento internacional. Tal projeção foi possível não apenas graças à competência única de nosso maior arquiteto, como também à colaboração de diversos outros profissionais excepcionais que colaboraram e continuam colaborando para a construção da cidade, como, dentre dezenas de outros, os arquitetos Augusto Guimarães Filho, Sabino Barrozo, Nauro Esteves e Glauco Campello, os engenheiros Joaquim Cardozo, Bernardo Sayão e Samuel Rawet e os artistas Athos Bulcão, Cândido Portinari, Alfredo Ceschiatti e Bruno Giorgi.

Em 1987, Brasília foi listada como Patrimônio Mundial pela UNESCO e consagrou-se como a maior área tombada do mundo, com 112,25 km². Foi inédita então a preservação de uma obra moderna, e foi excepcional sua valoração como concepção ideal com autores definidos – Costa e Niemeyer –, e não como objeto concreto com características concretas. Por isso, o caráter do tombamento de Brasília até hoje enseja ricos debates.

Recentemente, lideranças e autoridades passaram a avaliar a possibilidade de flexibilização nas regras de uso monofuncional das áreas centrais do Plano Piloto – sobretudo o Setor Comercial Sul. A proposta é possibilitar seu uso também como habitação popular de interesse social. Tal medida não apenas reduziria custos com mobilidade e infraestrutura para os próprios trabalhadores do Plano Piloto, como também tornaria a área mais viva e segura para além do horário de trabalho. “À semelhança do que ocorre em outras metrópoles, o centro de Brasília fica esvaziado durante a noite e finais de semana. O monofuncionalismo do zoneamento original acentua ainda mais esse problema em Brasília”, frisou o coordenador do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Distrito Federal (Arquitetos DF) e diretor da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Danilo Matoso.

O dirigente lembra que, “como ‘urbs’, Brasília deve ser pensada como uma metrópole, a qual inclui toda a área do Distrito Federal e mesmo do entorno, com muitas centralidades”. Matoso ressalta ainda que “mesmo originalmente, como já se demonstrou, Brasília não foi construída exatamente conforme o estudo que vencera o concurso. Para preservar a cidade, é preciso ter claros quais os elementos concretos a serem preservados, e sua caracterização deve ser bem detalhada. Afinal, ‘só se restaura a matéria’, como nos lembra Cesare Brandi”. Com a multiplicação e o crescimento das cidades satélites, o debate sobre a mobilidade ganha ainda mais força. Apesar de algumas regiões já terem desenvolvido uma certa autonomia em relação ao Plano Piloto, a região ainda é o centro de prestação de serviços da Capital Federal.

Segundo a presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e urbanistas (FNA), Eleonora Mascia, além do simbolismo para a arquitetura e o urbanismo modernos, de ser parte da identidade brasileira, Brasília é o “locus” do debate político. “É preciso maior compreensão das cidades pela coletividade, pensar propostas para a inclusão, democratização do espaço público e distribuição de renda mais justa”, ressaltou, colocando a importância da participação através dos sindicatos e entidades organizadas para enfrentar o grave momento de ataque às políticas públicas e à democracia.

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