“Estamos preocupados com o rumo que esse levante popular pode tomar e com a associação dele a um discurso midiático vazio”, alerta o artigo da historiadora Camila Petroni e da socióloga Débora Lessa. Confiram a análise das acadêmicas da PUC-SP sobre as recentes manifestações:
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O intuito da pequena reflexão que segue não é desmoralizar os atos ocorridos em diversas cidades brasileiras, que começaram contra o aumento das tarifas de transportes públicos, no início de junho, e, hoje, apresentam “pautas” variadas. É justamente a pulverização dessas motivações que nos preocupam. Quais são os motivos da luta mesmo?
Na página virtual (Facebook) do Quinto Ato, marcado para o dia 17 de Junho e com mais de 240 mil pessoas com presença confirmada (já esperando os ataques bárbaros da Polícia), as enquetes conseguem fazer qualquer queixo que se preze cair. Em uma delas, que perguntava qual bandeira deve-se levantar após a baixa dos preços das passagens (se houver), algumas das propostas colocadas como motivo de mobilização (mesmo que não muito votadas) são: cancelamento da Copa do Mundo 2014 (um tiro no pé, com todo o investimento já feito), Reforma Política (que reforma?), Segurança (mais PM nas ruas?), Diminuição da maioridade penal (sem comentários), Fim do Funk (projeto higienista manda um “Oi!”), a favor do Estatuto do Nascituro (sem comentários, de novo), CCC – Campanha Corruptos na Cadeia (não tinha um nome melhor? Quase um CCC – Comando de Caça aos Comunistas – de 1964), dentre outras propostas que preferimos não imaginar o que aconteceria caso ganhassem força.
Se por um lado, a heterogeneidade de propostas e a falta de uma liderança nos movimentos representa a possibilidade de uma relação horizontal entre os sujeitos; por outro, a falta de direcionamentos aponta para o risco de causas conservadoras se tornarem as principais do movimento agora sem nome. Não consideramos o quadro atual da manifestação como anárquico, classificação feita em algumas análises, mas como preocupante, nesse sentido.
Outro ponto bastante incômodo em relação às pessoas se organizando para o ato (e a fim de formar um movimento – longe de estar unificado), é o (perigoso) nacionalismo proposto por boa parte dos manifestantes, e presente principalmente na ideia de entoarem o Hino Nacional em coro. Em uma enquete, feita também na página de organização do ato da segunda-feira (17), a maioria esmagadora era a favor de que cantassem o Hino em massa. A verdade é que sentimentos ufanistas assustam, sobretudo por sabermos, historicamente, que nunca geraram bons frutos. Estudos apontam que o ideário nacionalista brasileiro, em sua trajetória, poucas vezes chegou às classes populares (por que será?), pertencendo aos militares. Um comentário bastante sensato feito na mesma enquete, colocou que o “hino é um instrumento que forja uma falsa unidade nacional”. Se a mundialização do capital está posta, a necessidade da mundialização da luta é latente. Para isso, nada de bandeiras do Brasil em volta de nossos corpos, nada de “pátria amada, idolatrada”.
É batido, mas Marx já justificara por A + B que “os operários não têm pátria” e, por mais que devamos lutar pelas condições horrendas as quais nos coloca o capitalismo, isso não tem a ver com o “orgulho de ser brasileiro”, mas com o orgulho de sermos humanos.
E aqui nasce uma nova preocupação: até ontem pairava no ar um espectro do oportunismo da “grande” mídia, que, aparentemente, pareceu ter sido desmistificado com as recentes publicações da Globo e seus atores com olhos pintados fazendo uma alusão à jornalista acertada covardemente com uma bala de borracha no olho, depois nos deparamos com um link a ser compartilhado nas redes sociais que trazia dicas de “Moda para protesto, roupa de guerra” – a estilista pop global, Gloria Kalil, já havia soltado no site dela opções de roupas (sic!) para ir ao ato. Agora, qualquer dúvida que ainda tínhamos sobre um possível oportunismo ficou clara ao nos depararmos com – o sempre tão incisivo – Arnaldo Jabor voltando atrás em relação a quando deslegitimizou as primeiras manifestações comparando-as com ações do PCC, vitimizando os policiais e ressaltando a ignorância política dos manifestantes. Ele se redime e depois compara o movimento ascendente com o, exaltado pela própria Globo, Caras Pintadas (o movimento pode ter se originado de uma indignação, mas logo foi absorvido pela maior rede de TV do Brasil… Ah! A mesma emissora que ajudou na eleição do Collor). Daqui a pouco, veremos propagandas de refrigerantes convocando o Brasil pras ruas, presenciado o maior “jogo” já visto… A arte de mercantilizar a revolução.
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Pra não dizer que não falamos dos espinhos, ter os povos nas ruas, em massa, não é sempre sinal de mudança popular. Em 1964, os setores conservadores da sociedade tremeram com a “ameaça comunista” (ainda com Jango no poder), que representava, na verdade, uma “ameaça” à propriedade privada e foram às ruas, em meio milhão de pessoas, com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Dias depois, instaurada a Ditadura Militar, um milhão de pessoas marcaram presença na Marcha da Vitória, comemorando o início de duas das piores décadas que já vivemos. Estamos preocupados com o rumo que esse levante popular pode tomar e com a associação dele a um discurso midiático vazio.
Não queremos ver uma marcha à la TFP, com pessoas vestidas de branco, cantando o hino e levantando bandeiras com os dizeres “Cansei”. Precisamos de sujeitos engajados em uma luta comprometida com os movimentos sociais e populares, aliados aos anseios dos trabalhadores!
Reiteramos, mais uma vez, nosso ânimo e contentamento em viver tudo isso, mas mantenhamos os pés no chão para não defendermos um discurso uníssono no qual o senso comum pode se misturar com o que deveria ser um discurso crítico e de esquerda.
Camila Petroni é historiadora pela PUC-SP,
Assistente Editorial e mestranda em História Social pela PUC-SP.
Débora Lessa é socióloga pela PUC-SP,
Professora de Sociologia e mestranda em Ciência Política pela PUC-SP.