Arquitetura social que corre nas veias

“Cada pequena conquista faz um enorme sentido para a nossa profissão”. Assim, o arquiteto e urbanista Alexandre Hodapp, 49 anos, define bem o sentido e o propósito do ser ‘arquiteto’, numa atuação focada em garantir qualidade de vida e dignidade de moradia aos que não têm condições de enfrentar sozinho esse abismo social. Coordenador de projetos de Urbanização de Favelas e Habitação de Interesse Social junto a Peabiru, Hodapp se depara com desafios diários para garantir assistência técnica e execução de projetos em comunidades de São Paulo (SP), cidade onde nasceu, graduou e agora cursa mestrado na área de projeto de arquitetura, na FAUUSP.

Em sua trajetória na Peabiru, onde ingressou em 2010 e se tornou membro um ano depois, constam projetos como o do Capelinha-Cocaia e do Batistini, em São Bernardo do Campo (SP). Também carrega marcas de outra iniciativa bastante conhecida no meio, o da reforma do Hotel Cambridge, icônico equipamento em plena 9 de Julho, no Centro de São Paulo, antes hotel e hoje sendo adaptado para se tornar um residencial. “Participamos quando o edifício estava ocupado, acompanhando o movimento MSTC por três anos até viabilizar a obra, que já dura dois anos e meio”, conta o arquiteto e urbanista, destacando que por conta dessa participação, nasceu também a sua linha de mestrado, que trata justamente da evolução do projeto do Cambridge.

Com trânsito no setor público e privado, em diferentes ‘lados do balcão’ como ele mesmo diz, Hodapp de longe percebe a dificuldade pelas quais passam os técnicos que atuam em projetos de HIS, especialmente quando o interesse dos gestores superiores não está de acordo com suas formas de atuação. Mas foi na Peabiru que encontrou espaço de atuação comprometido com esse trabalho, lugar que chama de um ambiente de decisão horizontal e sempre aberto a desafios. Nesta entrevista exclusiva à FNA, o profissional conta detalhes de todas suas experiências, seus pontos de vista sobre o gargalo da moradia no Brasil e opina sobre o que precisa ser feito para mudar essa realidade habitacional escancarada com a chegada da pandemia.

Confira a entrevista completa com o arquiteto e urbanista:

Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA) – Qual o foco da atuação da Peabiru? Com que tipos de projetos e obras vocês trabalham?

Alexandre Hodapp – A Peabiru foi criada em 1993 no contexto das assessorias técnicas de mutirão do governo municipal de Luiza Erundina em São Paulo, acompanhando entidades de luta por moradia a fim de viabilizar empreendimentos de habitação de interesse social. Com a chegada do programa Minha Casa Minha Vida Entidades, havia recursos para a execução das obras sem a necessidade da mão de obra mutirante (que seria um sobretrabalho para quem já teve jornada durante toda a semana) e a Peabiru passa a assessorar os movimentos no formato de autogestão. Na última década, a Peabiru teve um leque bastante diverso de atuação, sempre no campo de defesa do direito à moradia. Continuou atuando na viabilização de empreendimentos de HIS junto a movimentos sociais, mas também realizou pesquisas junto a universidades e organizações internacionais. Também fez projetos para prefeituras, desde edifícios até urbanização de favelas. Atuou na defesa de direitos fazendo planos populares que ajudaram a evitar a remoção de comunidades, está acompanhando obras de reformas de edifícios no centro e tem atuado junto a comunidades em assentamentos precários. Iniciamos alguns processos de formação, em conjunto com universidades, de profissionais para atuação no campo da ATHIS e, recentemente, temos trabalhado também com assentamentos rurais e trazido ao debate a questão das melhorias em edifícios ocupados no centro.

FNA – Nesses anos de atuação junto a Peabiru, houve algum projeto ou alguma obra que o marcou? Qual e por quê?

Hodapp – Entrei para acompanhar o projeto do Capelinha-Cocaia, que foi uma urbanização de favela encomendada pela prefeitura de São Bernardo do Campo. Foi um processo de muitos anos, que ainda está em implantação. Em seguida, houve um outro projeto para a mesma prefeitura chamado Batistini, onde tive a oportunidade de participar desde o início, para o levantamento das habitações caso a caso. Foi um grande avanço podermos utilizar os dados levantados em mapeamentos digitais. Também foi um projeto bastante complexo, que envolveu diversas áreas do conhecimento, em diversas escalas. Da melhoria das unidades habitacionais a serem consolidadas ao projeto urbanístico, passando por projetos de novos edifícios, infraestrutura urbana, regularização fundiária e recuperação ambiental. O outro projeto que me marcou bastante foi o de reforma do Residencial Cambridge, em que participamos ainda quando o edifício estava ocupado, acompanhando o movimento MSTC por três anos até viabilizar a obra, que já dura dois anos e meio. A reforma exige uma intensa capacidade de readequação dos projetos, o que nos trouxe constantes desafios para lidar com as novas situações encontradas ao longo da evolução da obra, agravadas com a chegada da pandemia e impossibilidade de presença integral da equipe no canteiro. Neste trabalho, além de revisarmos o projeto original que foi feito por técnicos da COHAB-SP e fazermos o acompanhamento da obra, também executamos o trabalho social em conjunto com a entidade MSTC. A interação com as famílias ao longo de todo o processo de viabilidade, projeto e obra, acrescenta muitos aspectos positivos ao olhar do profissional arquiteto, possibilitando troca de saberes, dinâmicas participativas e atividades de escuta dos anseios das famílias e coordenação do movimento, que foram sempre trazendo benefícios ao resultado final. Esta experiência está sendo, sem dúvida nenhuma, muito proveitosa para muitas pessoas envolvidas. Destas possibilidades, nasceu, inclusive, meu projeto de mestrado, que visa justamente fazer uma análise crítica da evolução deste projeto.

FNA – Hoje, qual a realidade da moradia popular no país?

Hodapp – Eu e muitos profissionais desta área acreditamos que só existe possibilidade de lidar de maneira consistente com a precariedade de um número muito grande de moradias no país a partir de um conjunto de políticas públicas estruturadas. Na última década vimos o avanço do Programa Minha Casa Minha Vida, que, por ter um caráter de programa econômico, apesar da grande estruturação do Ministério das Cidades, acabou deixando de cumprir o objetivo de melhorar a qualidade de vida das pessoas. Alguns conjuntos formaram guetos distantes em pequenos municípios, não contribuindo para uma cidade inclusiva. Ainda assim, o programa atingiu uma faixa de renda nunca atendida em programas anteriores. Dentro do MCMV, houve o MCMV-Entidades, que permitia que movimentos de moradia gerissem os próprios recursos, trazendo a possibilidade de uma melhor qualidade construtiva e arquitetônica. Entretanto, esta vertente do programa representou uma porcentagem baixíssima da produção, de menos de 1%. Houve ainda a grande valorização do solo urbano no período, que inviabilizava muitos estudos: a conta não fechava.

Ainda assim, tínhamos uma política pública, que, em conjunto com o PAC, trazia algumas possibilidades de atuação. Hoje o cenário é infinitamente mais catastrófico. Temos um desmonte generalizado das políticas públicas de habitação nas três esferas de governo. O municipal, diminuiu a incidência da sua estrutura através da SEHAB e COHAB, que estão esvaziadas e sucateou o Fundo Municipal de Habitação. Promete, há cerca de um ano, o lançamento de um programa, o Pode Entrar, que até hoje não foi implantado. No âmbito estadual, houve o desmonte da CDHU, companhia que contava com um significativo aporte do ICMS e tinha uma incidência importante em todo estado (apesar da questionável qualidade da produção). E no âmbito federal, o PMCMV foi encerrado, entrando no lugar o Casa Verde e Amarela, que baixou os subsídios, os recursos aportados e, principalmente, acabou com o grande mérito do PMCMV que era o atendimento da faixa mais pobre da população, de 0 a 3 salários mínimos de renda familiar.

FNA – O que o levou a atuar junto a movimentos populares de luta por moradia?

Hodapp – Atuei em diferentes “lados do balcão”, em empresas privadas de projeto, no poder público como gestor de projetos de HIS e fui parar na Peabiru. Isso me permitiu articular, de certa maneira, as dificuldades dos técnicos de cada um desses setores, principalmente quando o interesse dos seus superiores não condiz com suas formas de atuação. Na Peabiru, encontrei um ambiente de decisão horizontal, aberto a desafios e com uma equipe muito comprometida com seu trabalho. E nos colocamos ao lado dos movimentos de moradia, das pessoas que estão morando precariamente e lutam há anos por melhores condições de vida. Então, você percebe que sua profissão faz sentido e você se torna útil, para um projeto maior, de emancipação e redução das desigualdades. As pessoas que entram nos movimentos são transformadas pela luta coletiva. E eu como assessor, vejo em cada pequena conquista, um enorme sentido para nossa profissão.

FNA – De que forma o fomento pela moradia social contribui para o desenvolvimento das cidades?

Hodapp – Hoje entendo que o fomento não pode ser apenas um pretexto para girar a roda da indústria da construção civil, sem se importar profundamente com a população que vai habitar este local. Há um livro organizado pelo professor João Sette, cujo título traz exatamente esta questão: “produzir casas ou construir cidades”. Porque a produção de grandes conjuntos periféricos, que já foi tão criticada na década de 70/80, continuou a ser praticada nos últimos anos. Houve um grande avanço em relação ao edifício, ao seu desempenho construtivo e de conforto. Mas a inserção urbana e relação com a cidade existente ficou muito a desejar. Tenho insistido no tema da moradia nas áreas centrais, consolidação de ocupações – que afinal de contas são uma forma de atendimento – e no desenvolvimento de outras formas, para além da casa própria, como a locação social e a propriedade coletiva. A fixação de uma população vulnerável nas áreas centrais tem permitido que seus descendentes usufruam dos equipamentos da cidade, trazendo significativos ganhos no sentido da conquista de direitos e da diminuição das desigualdades e exclusão social. A presença de uma nova população onde havia prédios vazios, traz novas possibilidades de emprego e geração de renda, e, por que não, também novos consumidores, dinamizando o comércio local. A proximidade dos empregos traz uma qualidade de vida fundamental que é o aproveitamento do tempo livre para o lazer e desenvolvimento pessoal, no lugar de gastar horas em um ônibus lotado.

FNA – Em quais áreas a Arquitetura e Urbanismo do Brasil precisa evoluir para que o direito à moradia seja possível a toda população?

Hodapp – Hoje o que está em pauta é a regulamentação da Lei de Assistência Técnica pelos municípios, o que possibilitará a existência de um serviço público de qualidade e extremamente necessário para aquelas famílias que vivem em péssimas condições de habitabilidade. Daí decorre o reconhecimento de que a arquitetura é um campo do conhecimento importante e que pode ser acessado por qualquer um. Rompe com a ideia de que arquitetura é para uma elite e para ter somente realizações exclusivas e bonitas. E de quebra, traz a possibilidade de sustentação financeira para uma quantidade cada vez maior de profissionais que desejam atuar nesse campo.

FNA – Quais os principais desafios de se trabalhar com Athis no Brasil?

Hodapp – Hoje é a sustentabilidade das instituições e dos profissionais que atuam nesse campo. Uma vez que não existem políticas públicas que deem essa sustentabilidade, por diversas vezes, há que se ratear os custos com a própria população vulnerável envolvida, o que de saída é um contrassenso. Também não pode ser uma atividade filantrópica. É um trabalho e o profissional deve ser dignamente remunerado por isso, coisa que quem está nesse campo, sabe que não acontece. Há que se destacar os editais de fomento do CAU que, cada vez mais, têm se dedicado ao assunto, mas ainda são de alcance limitado. Paralelamente a isso há que existir fundo público estruturado para bancar as obras a serem realizadas, nas diversas modalidades e escalas.

FNA – Com a chegada da Covid-19, a população passou a ficar grande parte de seus dias em suas casas, o que trouxe à tona o debate sobre as condições de moradia das famílias de baixa renda. Qual sua visão sobre esse cenário?

Hodapp – Evidentemente que começa por quem definitivamente não tem casa. A quantidade de moradores de rua nas grandes cidades tem crescido a olhos vistos. É evidente que empurrados pela recessão econômica, desemprego e total falta de políticas públicas assistenciais para estes cidadãos. Mas os efeitos da crise também vão atingindo toda a população que paga aluguel, em um efeito dominó, onde quem já não consegue pagar o aluguel é expulso para um local mais distante e uma moradia mais precária. O que estava em um local melhor, muda-se para o imóvel recém desocupado, e assim acontece uma precarização generalizada. Aos que estão na ponta, não restam muitas opções: ocupar assentamentos precários cada vez mais distantes ou ir para a rua. Mas sempre haverá a possibilidade de ingressar em uma ocupação organizada por um movimento de moradia e começar a sua história de luta.

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