A luta pela qualidade na habitação social

“A ideia de uma cidade compacta, concentrada e ao mesmo tempo socialmente misturada, somente é viável coma a intervenção firme do Estado”, avalia o arquiteto e urbanista Pablo Benetti, mestre em Planejamento Urbano e Regional. Escritor e professor universitário, o especialista demonstra preocupação com os recentes cortes de recursos de programas sociais, entre eles os destinados à produção de habitações.

 

Autor do livro Habitação Social e Cidade – Desafios Para o Ensino de Projeto, lançado em 2012, Benetti destaca que permanece atual o desafio de lutar pela qualidade na habitação social, pela gestão democrática das cidades e pelo fortalecimento da produção do Minha Casa Minha Vida entidades. “Certamente as organizações sociais são hoje mais necessárias do que nunca, em torno delas será preciso reagrupar forças e continuar sonhando com um projeto de nação inclusivo, democrático e socialmente justo”.

 

Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, atualmente Benetti é professor colaborador voluntário do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo PROURB/UFRJ. Desde 2013, é coordenador de pesquisa do CNPq sobre qualidade de projetos Minha Casa Minha Vida. Na entrevista abaixo ele faz um paralelo entre a realidade no ano de lançamento do livro e os novos desafios. Confira:

 

1. Quais são os principais problemas quando o tema é habitação social X cidade no Brasil?

 

Os problemas colocados pela relação habitação social e cidade são muitos e variados, mas destacaria dois principalmente. O primeiro deles é o lugar dos pobres na cidade, o local onde será construída a habitação social. A grande maioria da produção empresarial orientada pela procura do lucro procura terrenos na borda urbana, geralmente em locais distantes das oportunidades de trabalho e mobilidade. Este é um padrão que se repete desde os tempos das remoções de favelas por Carlos Lacerda, passando pelo BNH e chegando nos tempos atuais.

 

A segunda questão decorre da anterior, para a lógica empresarial existe um número mínimo de unidades que justifica o empreendimento, e isto se traduz na procura de grandes terrenos – que somente existem na periferia das cidades – o resultado disto é a construção de grandes conjuntos homogêneos que imediatamente se diferenciam da trama urbana do entorno e carregam consigo o estigma da segregação. Mesmo em bairros com similar distribuição de renda, os novos moradores dos conjuntos sofrem esta discriminação. Ou seja há uma dupla segregação para os moradores, do local na cidade que já os estigmatiza e dentro do próprio bairro.

 

O que vai na contramão desta produção empresarial são os programas construídos pelo Minha Casa Minha Vida entidades, que tem lutado por permanecer em locais centrais, próximos a fontes de trabalho e mobilidade. Esta modalidade que corresponde a apenas 1% do orçamento está ameaçada pelo atual governo (Portaria 173), fruto do golpe jurídico-parlamentar. É um terrível retrocesso, porque pelos valores envolvidos não há nenhuma justificativa econômica para este corte. Estes bons exemplos de produção habitacional, construídos com os futuros moradores, ancorados na resistência a lógica dominante estão sendo agora descontinuados apenas por questões ideológicas.

 

2. Ao seu ver, quais seriam as soluções, do ponto de vista da arquitetura e urbanismo X políticas públicas, para esta problemática?

 

Não há solução possível para a questão apontada acima sem a gestão democrática do solo urbano, seja reservando áreas para a produção social de habitação em áreas centrais, seja utilizando os instrumentos do Estatuto das Cidades que permitem garantir a função social da propriedade urbana. A elaboração dos Planos Locais de habitação Social (PLHIS ) compatibilizados com o Plano Diretor da Cidade são instrumentos que em tese permitiriam a construção de uma cidade mais justa e democrática.

 

O Minha Casa Minha Vida é o primeiro programa que destinou recursos para as camadas de 1 a 3 salários mínimos, que é onde está concentrado o déficit habitacional. A concessão de subsídios para esta camada de renda é condição básica para o acesso a habitação. Muitos colegas afirmam que seria melhor colocar estes recursos diretamente na mão dos futuros moradores, esquecem porém que sem gestão da terra urbana, fatalmente estes recursos vão acabar criando novas periferias.

 

A ideia de uma cidade compacta, concentrada e ao mesmo tempo socialmente misturada, somente é viável coma a intervenção firme do Estado. Esperar que o mercado vá oferecer esta solução além de ser ingenuo é cínico. Carateriza a atuação do mercado a construção de áreas socialmente homogêneas onde os iguais moram junto aos seus iguais. Quebrar esta lógica somente é possível com a intervenção do Estado pressionado e apoiado pelos movimentos sociais.

 

3. O seu livro é sobre os desafios para o ensino de projeto. Levando em conta a realidade atual, face os cortes nas bolsas de ensino superior e nos diversos programas sociais, inclusive MCMV-Entidades (Portaria 173), podemos traçar um paralelo entre a realidade no ano de lançamento do livro e os novos desafios?

 

O livro foi lançado em 2012, quando o programa Minha Casa Minha Vida estava no auge. Após o lançamento, nosso Laboratório de Habitação + Forma Urbana do PROURB – FAU UFRJ teve a oportunidade de participar de uma pesquisa do Cnpq financiada pelo Ministério das Cidades que discutiu a qualidade da habitação em três escalas: localização na cidade, qualidade da vizinhança e dos conjuntos (disponível em :http://www.prourb2.fau.ufrj.br). Esta pesquisa contou com a participação de vários grupos e trouxe enormes contribuições para a reformulação do programa Minha Casa Minha Vida.

 

Ao mesmo tempo, por meio de um Convênio envolvendo Ministério das Cidades, Eletrobras, Procel e Universidades Federais, participamos do projeto Minha Casa Minha Vida + Sustentável, que consistiu na elaboração de dois projetos de conjuntos (um no Rio de Janeiro e outro em Lauro de Freitas). O que uniu ambas experiências foi a vontade do Ministério das Cidades de melhorar a implementação do Programa, procurando maior qualidade das propostas.

 

Estava prevista a publicação destas contribuições em quatro volumes que fariam parte da coleção de cadernos Minha Casa +Sustentável, o que esperamos que aconteça possivelmente não irá a ocorrer neste novo governo:

 

    • CADERNO 1: Custos Referenciais – Qualificação da Inserção Urbana/Parceiro: WRI Brasil – Cidades Sustentáveis,
    • CADERNO 2: Parâmetros Referenciais – Qualificação da Inserção Urbana. Parceiro: Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento
    • CADERNO 3: Análise Ambiental – Qualificação da Inserção Urbana. Parceiro: CECS-CCNH/Universidade Federal do ABC
    • CADERNO 4: Diretrizes, Recomendações e Especificações – Qualificação do Projeto Urbano, Parceiro: FAU/UFRJ- FAU/USP-FAU/PUCCAMP.

4. O que mudou de lá pra cá e que novos desafios porventura surgiram e/ou permanecem atuais?

 

Entre 2012 e 2016 o que vimos foi uma intenção séria da Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades de autocrítica e reformulação do programa, mantendo a política de subsídios e o foco nas camadas de baixa renda. Porém, estas iniciativas foram abruptamente interrompidas pelo golpe jurídico-parlamentar em curso. As publicações certamente deverão ser feitas pelos parceiros (universidades e instituições) porém seu efeito na reformulação dos programas habitacionais certamente será nulo. Ainda a manutenção de grupos de pesquisa com este foco está seriamente ameaçada pelos cortes de verbas públicas anunciados.

 

Em 2012, tínhamos no horizonte vultosos recursos para a produção de habitação o que nos permitia sonhar com a redução significativa do deficit habitacional. Hoje, após o golpe, o que certamente veremos é a volta da lógica do mercado integralmente, com a progressiva eliminação dos subsídios e o acesso a habitação destinado as camadas médias e ricas da sociedade, numa re edição dos programas e do perfil de financiamento da época da ditadura militar e dos governos neo- liberais que a sucederam.

 

A composição do novo Ministério não nos permite ter nenhuma expectativa de uma gestão democrática e participativa. É sintomática a edição da medida provisória 173 como uma dos primeiros atos do governo a dizer para a sociedade que todas aquelas iniciativas que fortaleçam a organização popular e a qualidade da produção habitacional estão ameaçadas.

 

Permanece atual o desafio de manter as bandeiras da luta pela qualidade na habitação social, pela gestão democrática das cidades e pelo fortalecimento da produção do Minha Casa Minha Vida entidades. Certamente as organizações sociais são hoje mais necessárias do que nunca. Em torno delas será preciso reagrupar forças e continuar sonhando com um projeto de nação inclusivo, democrático e socialmente justo.

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